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sábado, 12 de outubro de 2013

REFN: O QUE FAZER COM A MEMÓRIA DO CINEMA ?



Nicolas Winding Refn (N-1970) e Lars Von Trier (N- 1956), dinamarqueses,  o primeiro tendo crescido e formando-se nos Estados Unidos, o segundo não morrendo de amores pela América, são seguramente, dos cineastas  mais provocadores e polarizadores da actualidade, atraindo as vaias mais estridentes  e os aplausos mais vigorosos do sensível espectro de opiniões dos cinéfilos. Este assunto da crítica nos extremos é em si mesmo um campo fascinante de análise, mas deixemos os devaneios metalinguísticos para núpcias mais excitantes. A talho de foice,  direi apenas dos detratores exacerbados, que pulverizam baba e ranho por causa de um simples filme, como se este fosse mais perigoso que a própria peste  e dos aduladores pueris que estão sempre prontos para ver clarões de génio onde apenas faíscam tímidos fogachos, que tais opiniões embora à partida legítimas, tornam-se suspeitas pela forma metódica com que acentuam  putativos  vícios  ou  declaradas  virtudes,  exorbitando a importância da própria crítica e parecendo ter mais a ver com um problema discinético na descarga dos humores orgânicos do escriba, do que com o cinema própriamente dito.
A bolinha do péssimo,  um  clássico  de  algumas  publicações  como   o   jornal "Público" que é sempre  servida como guloseima e com  catraia alegria pelo  crítico de serviço, como não podia deixar de ser, foi exibida ao último filme de Refn. Pavlov explicou o fenómeno com cachorrinhos há quase 100 anos, mas a essas questões voltaremos mais tarde. Em relação ao cineasta em discussão e contra a corrente , elogiemos o injustamente vilipendiado "meio-termo" (encarado de forma redutora como apologia das "meias-tintas" ou de sinónimo de "uma no cravo, outra na ferradura" e de outras tibiezas do género) que nos parece ajustado ao seu perfil e  fiquemo-nos com uma visita guiada à sua obra, construída de forma coerente, na recriação de uma certa memória do cinema, muito diferente da excessiva colagem ou mesmo plágio de que é injustamente  acusado. É que são tantos os nomes que vêm à baila neste apontar de dedo, desde os  badalados Quentin Tarantino, David Lynch e Stanley Kubrick, até outros menos óbvios como Peter Yates, Michael Mann, Walter Hill e Jean Pierre-Melville, cineastas tão díspares na forma e no conteúdo, que só um génio, poderia sintetizar e tecer de forma consistente, contribuições artísticas tão variegadas.   Cineasta com um perfil  maneirista, de cunho neoclássico, assume as referências como influências ao invés de fingir que vive noutro planeta ou que é desmemoriado e que é possível ignorar a memória do cinema. Memória revivida, tanto no estilo como na substância. Memória de uma certa marginalidade, exibida sem pudores e servida sem rodeios ou explicações, com doses generosas de violência gráfica e muito longe do  lema redutor, "sexo, drogas e Rock & Roll". O seu trabalho revela improviso, instinto e partilha, porque concede aos participantes dos seus projectos, liberdade creativa q.b. Calculisticamente hermético e niilista, provocador e polémico, conscientemente longe do génio e da banalidade,  eis o meu retrato pessoal de  Nicolas Winding Refn.

TRILOGIA PUSHER (1996-2005)
☑ PUSHER (1996)
"Pusher".
Dinamarca(1996); Linguagem: Dinamarquês.
De: Nicolas Winding Refn (argumento e realização). Fotografia: Morten Soborg.
Com: Kim Bodnia, Zlatko Buric, Laura Drasbaek e Mads Mikkelsen.
Crime, Thriller. 105 minutos.Cor.

Sinopse:
No submundo de Copenhaga, Frank (Kim Bodnia) um  dealer local, é apanhado num clima de altas pressões para pagar a enorme dívida contraída a um cruel e implacável barão da droga.

 
Neste filme  de estreia de Refn, que também escreveu o argumento a meias com Jens Dahl, começa a desenhar-se a visão cinematográfica de Refn, as suas obsessões, o seu estilo e as suas influências. Refn, nesta altura sem qualquer experiência académica e profissional no cinema, abarcou-se ele próprio, à escrita de um argumento  linear, tratando com o já de si muito pesado, desagradável e pouco original mundo do consumo e tráfego de drogas. Com os seus verdes 26 anos, cumpriu a preceito a tarefa, com um filme crú, de ritmo vertiginoso e de emoções à flôr da pele. Não tendo o lado negro e asfixiante de "Trainspointing", nem o caos paródico de "Pulp Fiction", "Pusher" impõe-se no entanto pela energia naive, do primeiro olhar de Refn . A cinematografia  artesanal, em grande parte apoiada em câmaras de mão que acompanham a frenética ação nas ruas e nos interiores, comunga deste desprendido e impiedoso olhar do realizador pelo submundo de Copenhaga, resultando em imagens "granitadas", matizadas pelas cores fortes que virão a marcar o cinema deste realizador. 
A música com uma batida grave, obsessiva e claustrofóbica, reforça o lado negro e depressivo, que percorre este filme de ponta a ponta, sem glória, nem esperança. 

☑ PUSHER II
"Pusher II"
Dinamarca (2004). Linguagem: Dinamarquês.
De: Nicolas Winding Refn (realização e argumento).
Com: Mads Mikkelsen, Leif Sylvester e Anne Sorensen.
Drama. 100 minutos. Cor.

Sinopse:
Tony (Mads Mikkelsen) é um habitué do crime e das prisões, que agora em liberdade enfrenta as dificuldades de adaptação e reinserção num quotidiano marcado pelo desprezo do seu pai e pela desconfiança do seu círculo de relações.

 
Tony (Mads Mikkelsen), que no filme anterior da saga tinha denunciado o seu amigo Frank à polícia, surge-nos nesta sequela, como um ex-presidiário que enfrenta a resignação e a solidão do regresso forçado a uma vida de marginalidade, desta vez, encoberta na aparente normalidade de uma respeitável família e comunidade local. Talvez não o mesmo "respeito", que Tony apregoa num icónico  tatoo no seu couro cabeludo.
Com perspicácia e inteligência, Refn, alarga as temáticas da delinquência, às complexas interações familiares e sociais, através do retrato da relação  entre  Tony e o seu pai, um mafioso com reconhecida influência social e com queda para abandonar as companheiras à sua sorte, como fora no passado com a mãe de Tony e agora com uma jovem, de quem tinha uma criança. Desta forma, emerge uma inesperada dimensão humana  num quotidiano marcado pelos negócios obscuros, o materialismo e a vacuidade das relações afectivas, fazendo deste filme uma obra merecedora da atenção dos amantes de cinema.

☑ PUSHER III
"Pusher III"
Dinamarca (2005); Linguagem: Dinamarquês.
De: Nicolas Winding Refn  (argumento e realização).
Com: Zlatko Buric, Marinela Dekic e Slako Labovic.
Drama. 90 minutos. Cor.

Sinopse:
Neste fecho de trilogia, reencontramos Milo (Zlatko Buric), o sérvio barão da droga do primeiro filme, como um respeitável homem de negócios, preocupado com a logística da festa do 25º aniversário da sua filha. Mas o negócio da droga, está-lhe no sangue e os seus problemas agudizam-se com uma operação de venda de ectasy que corre mal. Para novos males, velhos remédios e uma ajuda de um velho "companhon de route" é sempre bem vinda.

Este filme até que começa bem, ao mostrar-nos Milo, o sérvio barão da droga, agora como um sexagenário, com aparência de aposentado e sensível chefe de família, preocupado com a festa do 25º aniversário da sua filha Milena e encarregando-se ele próprio, com os seus dotes de cozinheiro, da balcânica ementa. Isto é claro, ao mesmo tempo que trata dos negócios, adivinhem quais... 
Antevia-se assim o regresso de uma dimensão humana que fizera do segundo fime da saga, o auge da trilogia, agora apimentado com as inevitáveis referências cinéfilas de Refn, no caso, ao "padrinho" de Coppola. Isto seria mais ou menos natural, se não passase a colagem obsessiva e quase exclusiva de paisagens visuais de outros universos cinéfilos, não faltando a figura do "cleaner", decalcada do "Pulp Fiction", de Tarantino, mas sem a dose de excesso paródico e entretenimento visceral que perpassa pelas obras do americano. Resulta assim um produto híbrido e algo inconsequente, como se Refn, a certa altura perdesse o pé e se socorresse das  boias salvíficas da sua memória cinéfila.

☑ BLEEDER
"Bleeder"
Dinamarca (1999); Linguagem: Dinamarquês. 
De: Nicolas Winding Refn (argumento e realização).
Com: Kim Bodnia, Mads Mikkelsen, Levino Jensen  e Rikke Louise Andersson.
Drama. 98minutos. Cor.

Sinopse:
Leo e Louise são um jovem casal de Copenhaga. Leo sai frequentemente com um grupo de amigos cinéfilos, enquanto Louise fica em casa. Quando Louise, revela que está grávida, Leo não gosta e a tensão crescente eclode em violência.


Neste filme, Refn aborda outros temas relacionados com gente jovem em processo de crescimento, incluindo os problemas da relação de um jovem casal, uma  visão  diferenciada da maternidade e da paternidade e a violência conjugal. Outros assuntos focados no filme incluem algumas opiniões avulsas dos intérpretes sobre a violência e o uso de armas e a sua postura em relação às ameaças da SIDA, não nos devendo esquecer que estamos em 1999. O realizador não teve a preocupação de abordar qualquer um destes temas em particular, apresentando-nos um quadro geral dos problemas de uma geração na mudança do milénio em Copenhaga.É curioso que um dos polos de interesse dos jovens deste filme, gire em torno do cinema, mais concretamente o mundo dos VHS domésticos e a sua suposta influência no quotidiano desta gente.
Globalmente, o filme é um pouco desiquilibrado e aqui e ali perpassa a ideia de uma certa superficialidade, que deriva do quadro social demasiado genérico e abrangente. A forma como é abordada a ameaça da SIDA  e a sua conexão ao título do filme é demasiado grosseira e panfletária para ser levada a sério.
Mesmo assim, o filme revela aspetos positivos que derivam também da excelente interpretação dos atores, e que  justificam uma visualização descomprometida.


☑ FEAR X
"Fear X" (Original em Inglês)
"Fear X : O medo" (Portugal)
EUA (2003). Linguagem: Inglês
De: Nicolas Winding Refn (realização e argumento- com Hubert Selby Jr. )
Com: John Turturro, Deborah Kara Unger e Stephen Eric McIntyre.
Drama, Thriller psicológico. 91 minutos. Cor.
Fotografia: Larry Smith. Música: Brian Eno.

Sinopse: 
Harry (John Turturro) é um segurança de um Shopping Centre no Wisconsin, em cujo parque de estacionamento a sua mulher fora morta por um disparo de um desconhecido. Harry vive obcecado em descobrir a verdade, visionando horas e horas dos videos de segurança, no sentido de descobrir alguma pista sobre o ocorrido.
  
Primeiro filme "americano" e em Inglês, da carreira de Refn. A aventura americana contou com a colaboração de nomes prestigiados como o escritor e argumentista americano  Hubert Selby Jr ( "A última Saída para Brooklin", "A vida não é um sonho") e  Larry Smith, um colaborador de Stanley Kubrik ( "The Shining") que assina a fotografia, para além  de Brian Eno, que deu uns toques na banda sonora. Uma experiência, que diga-se de passagem, não correu como Refn esperava, o filme foi recebido friamente pela crítica e público, e financeiramente foi um desastre, deixando falido o realizador, que foi para  Londres com uma mão à frente e outra atrás, disposto até a fazer episódios de "Miss Marple" para a TV.
Mais do que um desejo de vingança, é a expiação da culpa e a resistência a um medo indefinido que leva Harry, o protagonista a dedicar longas horas do dia a visualizar infindáveis fitas de segurança para descortinar um motivo que seja para a morte da sua mulher, em circunstâncias trágicas. E forçando  a leitura, a expressão colectiva da paranoia da América do pós 11 de Setembro, serve de fundo sociológico a este drama pessoal, apresentado do ponto de vista formal, como um thriller psicológico, embora Refn esteja menos interessado  na contaminação do medo ao espectador do que no choque psicológico e moral que os temas da perda e da culpa suscitam.
Em alguns aspetos Refn não resiste a uma reiterada reverência aos seus autores de culto, o que para alguns se lê como uma expressão eufemística para a queda para o plágio que segundo eles  o Dinamarquês  tem exibido proficuamente, com maior ou menor habilidade, desde que se meteu nestas coisas do cinema. Para mim, acentuo apenas, que recriar um ambiente "Kubrikiano" ou "Lynchiano", como nas cenas do Hotel, deve ser encarado como um elogio - a memória do cinema servirá para alguma coisa e aqui falamos em "recriar", certo ? - e além disso a presença de Larry Smith na fotografia, poderá explicar alguma coisa. Se Refn, consegue passar para nós público uma atmosfera psicológica que não ressoe a "deja vue" é o que faz a diferença e para nós, neste teste, Refn passou com distinção.
Um bom filme também  implica boas interpretações  e essas, sobretudo a de um convincente John Turturro, estão lá .


☑ BRONSON
"Bronson"
Reino Unido (2008). Linguagem: Inglês.
De: Nicolas Winding Refn (Realização e argumento - com Brock Norman Brock)
Com: Tom Hardy, Kelly Adams, Luing Andrews e Katy Barker.
Director de fotografia: Larry Smith.
Biografia. Ação. Crime. 92 minutos. Cor. Musica: New Order, Pet Shop Boys, Glass Candy.

Sinopse:
 Baseado na história verídica de um célebre prisioneiro inglês. Um  delinquente passa trinta anos confinado à solitária em várias prisões do Reino Unido e durante esse processo a sua personalidade irascível e violenta coabita com o seu alter ego, Charles Bronson.

Depois da incursão americana, "Bronson" representa uma aposta na história verídica do mais violento prisioneiro inglês, que passou 30 anos na solitária. Rodado no reino unido e com o versátil ator britânico Tom Hardy ("RocknRolla", "Oliver Twist", "Wuthering Heighst") como protagonista, este filme continua com a direção de fotografia de Larry Smith, que recorreu a uma palete de  cores hiper-saturadas para ilustrar uma história de inusitada violência  auto-destrutiva,  furtando-se Refn de forma inteligente  às  leituras ou lógicas causais  que frequentemente se invocam a propósito de comportamentos tão bizarros. Em vez disso, o realizador opta por misturar elementos de um clássico "biopic", com a realidade alternativa  associada ao alter ego do protagonista, significativamente chamado "Charlie Bronson", que acrescenta para além do óbvio, um toque de ironia à história do homem que apenas queria ser "famoso". A música adquire grande importância no desenrolar da narrativa, já que Refn via este filme como uma "Ópera". "A música é como uma droga, que nos reconecta com os nossos instintos mais profundos", assumiu o cineasta.
Globalmente o filme é dominado pela exemplar performance de Hardy e de certa forma para memória futura, este é mais um filme de "ator" do que de "autor". No entanto, a mão de Refn e para sermos justos as mãozinhas de Smith e do co-argumentista Bock Norman Brock,  dotam este filme de uma atmosfera algo experimental e de uma inegável  complexidade dramática, que o tornam notado no conjunto da obra do autor dinamarquês.

☑ VALHALLA RISING - DESTINO DE SANGUE
"Valhalla Rising"  (Dinamarca & Reino Unido -  2009). Linguagem: Inglês.
"Valhalla Rising - Destino de sangue" (Portugal). 
De: Nicolas Winding Refn (realização e argumento com Roy Jacobsen e Matthew Read)
Com: Mads Mikkelsen, Alexander Morton, Stewart Porter, Maarten Stevenson, Gary Lewis e Jamie Sives.
Aventura. Drama; Thriller sobrenatural.
93 minutos. Cor. 
Direção de fotografia: Morten Soborg. Música de Peter Kyed e Peter Peter.

Sinopse:
Na era medieval, "One Eye", um guerreiro mudo e invencível,  é feito prisioneiro de um clã nórdico. Conseguindo escapar, "One Eye" embarca num barco de Vikings cruzados, rumo à terra santa. O barco  é logo  envolvido por denso nevoeiro e mantem-se à deriva durante muito tempo até que por fim aporta a uma terra desconhecida. E é aí, no "novo mundo", cheio de segredos e armadilhas, que aqueles homens são confrontados com o seu terrível destino de sangue e "One Eye" descobre a  verdade da sua vida.


Ver este filme é acima de tudo participar de uma experiência sensorial, onde mais que as palavras, são as imagens, os sons e os silêncios, que contam a história e através das emoções e das cognições que essas técnicas em nós despertam, somos de certa forma, compelidos a fazer parte dela. 
É por este efeito visceral,  de emersão na matéria fílmica,  por esta recusa da linearidade e das regras narrativas convencionais que este filme, é tão mal compreendido e tão sujeito a equívocos, ampliados  de resto,  pela etiquetagem forçada no género "Aventuras" e pelos chamarizes que os adereços Vikings e a mitologia nórdica, possam constituir para os sequiosos de ação ou conhecimento lúdico, coisas de que este filme passa deliberadamente ao lado.
Neste filme o elemento relacional está focado no protagonista caolho (Mads Mikkelsen), e essa singularidade anatómica, poderá não ser acidental, pois de certa forma é através da sua visão monocolar que nos é "permitido" ver o filme e  da sua relação com os outros personagens, da sua postura face ao espaço envolvente e a  um tempo elusivo, extrair as coordenadas da história.
O filme é uma viagem à deriva num espaço físico e num universo mental sem coordenadas pré-estabelecidas, em que se questiona permanentemente  o sonho de transcendência do ser humano e a sua importância na história. Uma jornada só aparentemente colectiva, porque como se constata no filme, as crenças só unem à superfície e no âmago da condição humana subsistem territórios que não se conformam às ideologias vigentes. E de resto, o filme espelha esta contradição absoluta entre a colectivação legitimada pelo poder político e pelas crenças religiosas e o desafio pessoal de liberdade e de  superação  que se transfiguram em  violência visceral.
Toda esta experiência de imbebição cinematográfica só é possível com uma fotografia evocadora de uma atmosfera sobrenatural, alucinatória e pujante de significados simbólicos a que se associa uma banda sonora de intensidade visceral, pontuando os ritmos da narrativa. E contando ainda, é claro, com  a irrepreensivel performance de Mads Mikkelsen,  Refn soube  tecer uma unidade  fílmica coerente, que lhe deixaria marcas e pontes para o futuro, como haveremos de comprovar.

☑ DRIVE
"Drive" (EUA). "Drive - Risco duplo" (Portugal).
EUA (2011). Linguagem: Inglês.
De: Nicolas Winding Refn.
Argumento: Hossein Amini e James Sallis (livro: "Drive", de 2005)
Com: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston e Albert Brooks.
Cinematografia: Newton Thomas Sigel.
Música: Cliff Martinez.
Drama. Crime. 100 minutos. Cor.

Sinopse
Um misterioso duplo de Hollywwod, mecânico e condutor (Ryan Gosling), entra em sarilhos quando a sua vida se cruza com a família do apartamento vizinho, onde vive um homem com ligações ao mundo do crime, a sua bela companheira e um menino, filho de ambos.

Drive é um filme bem feito, como aliás foi reconhecido com o prémio de realização do festival de Cannes de 2011, valendo  o que vale esta distinção.
Do argumento baseado numa novela de James Sallis, não se esperava que fosse particularmente inovador, contando-nos pela enésima vez uma história de encarniçada vingança, motivada por motivos passionais. A singularidade e a complexidade da história, resulta da ausência de qualquer moralidade sugerida ou imposta e da  recusa de qualquer redenção ou expectativa,  inevitavelmente associadas aos "clichés" do amor romântico. Esta é antes de mais, uma história de solidão e de verdades e mentiras, vividas e assumidas. O nosso condutor, guia-nos ora lenta ora velozmente, por ínvios caminhos e não há GPS que nos valha, temos apenas o instinto cinéfilo. Refn conta-nos esta história de contornos niilistas, com o seu cunho maneirista muito pessoal, assente no rigor clássico de enquadramentos desenhados a régua e esquadro e numa   composição indirecta dos caracteres, apoiados num propositado "score" musical eletrónico, que ajuda a criar a atmosfera de ameaça e tensão que percorre a narrativa,  evocando dessa forma iniludíveis referências cinéfilas dos anos 80 ("Driver" de Walter Hill, à cabeça, não esquecido por Refn nas dedicatórias da praxe), mas mantendo sempre a sua identidade, não  se deixando  diluir ou  cristalizar nessa memória. Os diálogos estão reduzidos ao mínimo indispensável, sabendo-se que interessa a Refn, mais a expressão gráfica da vitalidade diferenciada dos espaços, dos rostos e dos gestos e da ressonância dos sons e dos silêncios que lhes estão associados, do que a volatilidade das palavras. É do reflexo  dessas imagens que nascem as impressões sensitivas e cognitivas que dão vida ao filme, dessa forma  desenhando-se o intrincado mapa mental por onde somos conduzidos.
Ryan Gosling veste a pele do "lobo solitário", do "herói sem nome", como se fora uma versão moderna de Steve McQueen ou de Clint Eastwood. E de resto, o cinema  é o personagem omnipresente deste filme, uma vez que o nosso protagonista, um duplo de Hollywood,   é alguém que representa num plano invisível, tirando de resto, proveito disso em esquemas ilegais. Está habituado a fazer calado  o mais difícil e até o impossível aos nossos olhos que nem sequer o vêm, escondido que está atrás dos efeitos que cria. De certa forma, esta ilusão prolonga-se para dentro do nosso filme fazendo desse homem o nosso duplo. É através dele que contornamos e iludimos a lei, amamos e fazemos filantropia e exercemos a justa vingança, sem que nos magoemos ou sujemos as mãos. Porque isto é apenas cinema.

☑ SÓ DEUS PERDOA
"Only God forgives" (2013). (EUA, França, Tailândia, Suécia). Linguagem: Inglês.
"Só Deus perdoa" (Portugal)
De: Nicolas Winding Refn (argumento e realização)
Com: Ryan Gosling, Kristin Scott Thomas, Vithaya Pansringarm.
Cinematografia: Larry Smith.
Musica: Cliff Martinez.
Crime. Drama. Thriller.90 minutos.Cor.
Sinopse
Julian (Ryan Gosling) é um jovem ocidental que vive em Banguecoque com o seu irmão, gerindo um clube de Boxe, que serve na realidade de fachada para o negócio da droga.   Pelo seu carácter solitário e impassível ele, esconde os traumas do passado, onde figura o assassínio  de um homem, 10 anos antes em circunstâncias brutais, mas que não são esclarecidas no filme. Quando o seu irmão mata uma prostituta, entra em cena Chang (Vithaya Pansringarm), um temível polícia reformado que age como um "anjo da vingança", instando o pai da moça a matar o assassino e por fim sendo-lhe amputado um braço. Crystal (Kristin Scott Thomas), a mãe de Julian e Gordon e líder da organização criminosa, chega a Banguecoque para levar o corpo do seu filho e encarregar Julian da sua vingança.

Este filme não é uma sequela de "Drive", como à partida se esperaria, mas era inevitável a comparação com o filme anterior e de certa forma também esperada a histeria divisionista do "ama-me ou odeia-me", resultado do veneno que o realizador já tinha injectado  nos filmes precedentes e que atingiu em Cannes  o climax de uma autêntica reação em cadeia. Fenómeno estudado por Refn com a  perfídia de um "marketing" subliminar ? Talvez... O que é certo é que o realizador tem sempre a resposta politicamente correta na ponta da língua: sinal de que o filme acerta em cheio no alvo e não deixa ninguém indiferente. A primeira verdade revelada por este filme, de certa forma em consonância com uma estrutura religiosa que se vislumbra de uma narrativa  hermeticamente escondida em símbolos, liturgias  e parábolas visuais, onde o mais importante - como o autor não se cansa de repetir - é o que não se  vê e o que não se ouve, nem o que tem explicação, ou seja, os pressupostos de uma  crença.   Os temas centrais - a culpa e o castigo - mais do que um pretexto para leituras psicanalistas, com Édipos e o diabo a quatro à mistura, tentação difícil de resistir, tanto para quem cria como para quem "interpreta", são deixados ao Deus dará, numa terra de ninguém, não por acaso nessa fronteira do Oriente e do Ocidente, onde qualquer moral tem dificuldade em se ancorar. Habilidade indiscutível, esta de Refn, de chutar para um conveniente canto metafísico estes  monos linguísticos, em prol de uma narrativa mais primária, visceral e sanguinolenta, ao fim e ao cabo a matéria orgânica  foi sempre o âmago dos filmes de Refn e não a alma...  
Matéria mesmo a jeito para um filme  inteiramente nocturno, numa cidade de Banguecoque, cuja luz é mais forte de noite. E para os instintos primários à flôr da pele, lá estão as cores primárias da cinematografia  e a linearidade da música de Karaoke Tailandesa, a balizar os pontos de "check point", ou de transição da narrativa.
Com todos estes elementos, não se esperaria que um personagem como Julian falasse muito ou expressasse muitas emoções, como muita gente desvairadamente reclama. Não neste filme, como é óbvio...
Muita desta dinâmica emocional é veiculada e preenchida por  uma cinematografia que não ignora antes honra as referências (vê-se a razão de  Larry Smith ter trabalhado com Kubrick),    e por um "score" musical a preceito (de Cliff Martinez).
Quanto a ressonâncias de filmes anteriores do realizador, "Valhalla Rising" e "Drive" têm uma estrutura idêntica, como refere Refn e eu concordo.
E que dizer do  pecado capital apontado por muitos críticos da "ripagem"  de referências cinéfilas, de Lynch a Kubrick, passando por Tarantino ?
Bem...elas (influências e não ripagens) estão lá, como se descobre a qualquer cineasta minimamente capaz e com memória, mesmo aqueles supracitados. Refn diz e bem, que a sua tarefa entre filmes é desconstruir e recriar. De olhos bem abertos. Sem aspas. E faz bem.

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