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quinta-feira, 19 de junho de 2014

☑ A PONTE SOBRE O DRINA, DE IVO ANDRIC

Ficção histórica imperdível

" A Ponte sobre o Drina", de Ivo Andric.
Original de 1942. Edição Portuguesa, de 2007, da Cavalo de Ferro. 
416 páginas.
No início, o leitor encontra-se em pleno século XVI, em Visegrad, cidade na fronteira entre a Sérvia e a Bósnia. Mehmed-Paxá, Grão-vizir, sonha ainda com o dia em que, criança, foi separado da sua família cristã, obrigado a atravessar para a outra margem do rio. É essa criança que agora, décadas depois, convertido à fé do Islão, dá a ordem de construção de uma ponte sobre o rio Drina. Esta é a história épica dessa ponte, e também a dos seus habitantes. A sua edificação exigiu anos de trabalho árduo, lágrimas e sangue, sacrifícios e vítimas. Ao longo dos séculos a ponte foi local de passagem, de encontros, de conversas, de conspirações; sofreu inundações, foi encerrada para impedir o alastrar da peste, assistiu a suicídios; sobre ela transitaram exércitos em fuga e desfilaram outros vitoriosos; nela foram executados espiões, viu o desmoronar de Impérios, e o nascer de novas nações... Romance histórico, grande épico europeu, «A Ponte sobre o Drina» pertence à categoria das obras incontornáveis da literatura mundial. 
Recensão  FNAC


Um livro para ler e reler, sobretudo para quem gosta de uma boa obra de ficção histórica, escrita com sabedoria e brilho, ao jeito de crónicas de contornos romanescos, sobre importantes períodos históricos dos Balcãs, tendo por fonte inspiradora a rica tradição oral da Bósnia natal do escritor.
A Ponte sobre o rio Drina é a personagem central deste romance, para a qual todas as outras personagens são atraídas, servindo de palco à representação de muitos acontecimentos, alguns extraordinários, a maioria triviais, de um quotidiano ordinário, marcado pela coabitação nem sempre pacífica, de diferentes culturas e credos religiosos. Uma ponte, que une e separa dois mundos  espiritualmente tão diferentes, mas basicamente tão semelhantes, nas suas forças e fraquezas humanas. As mudanças históricas, primeiro com a conquista  Otomana e a islamização e depois a substituição desse domínio pela tutela ocidentalizada do império Austro-Húngaro, enfrentando ambas a pertinaz resistência Sérvia, têm na ponte a sua resultante  e ao mesmo tempo o seu símbolo de imutabilidade e carácter perene, face  à volatilidade das impressões e demais realizações humanas.
Os dias, os anos e os séculos passam,  os sonhos, anseios, gestos e vozes sucumbem, renascem ou transmutam-se  na sucessão imparável das várias gerações de Visegradenses. Só a ponte permanece em pé até ao fim, como a testemunha imperturbável e quase imutável das transformações físicas e humanas. 
E hoje, sabemo-lo bem,  para além da ficção e da última página do livro, a ponte continua lá com a mesma imperturbável e elegante fisionomia,  mesmo depois de bombardeada e amputada, em duas grandes  guerras e de  ter sido, de novo, testemunha silenciosa de outros tristes acontecimentos da História recente dos balcãs. Até por isso, o livro é imperdível para quem quiser entender minimamente o complexo mundo dos balcâs.

terça-feira, 10 de junho de 2014

A IMAGEM QUE FALTA, de Rithy Panh (2013)

"A Imagem que falta".
L'Image manquante" (Titulo original).
De Rithy Panh. Cambodja.França (2013).
92 minutos.

Vi ontem em casa "A Imagem que falta".
Quero dar a minha opinião, antes de a inquinar com comentarios alheios.
Fatalmente irei ler o que outros  "mais credenciados" disseram.
Acho um filme extraordinario. Porque? 
Porque a forma é invulgar e  bela e o conteúdo  muito importante.
A forma, coloca as questões que são recorrentes quando se fala no significado do cinema.
Atores? Bonecos? 
Que diferença faz se o que se pretende é a ilusão e sobretudo a recriação? A utilização de imagens de arquivo permite mesclar a ficcão com a "realidade" .
O conteudo é de uma consistência à prova de ódio e de rancor.
É quase imparcial em algumas sequências. Pretende quase ouvir a outra parte e se alguma coisa eu posso apontar (talvez em próximo filme) é não o ter feito.
A Imagem perdida de um cinema reencontrado

O bom cinema é assim. 
Pressente-se toda  a magia do divino nessa arte que nasce do nada, do pó, do barro e vai ganhando corpo e alma, nas mãos de alguém que lhe vai modelando as formas e definindo as feições,  ao mesmo tempo que lhe sopra o espírito na forma inerte para lhe dar vida. E como toda a vida, só atinge a plenitude na relação e no encontro com o outro. E o outro  sou eu, este que aqui escrevo e que me predisponho a ser encontrado. E essa vida percorre por mim, o espaço que nos separa e que eu não posso percorrer, e por isso, ela é agora a luz e o som que toca as minhas estáticas superfícies sensoriais e as estimula, materializando esse encontro.
E esta é uma história contada bem ao jeito do imaginário infantil, como se estivéssemos perante aquela voz significativa das nossas memórias da infância, mas que agora, embora nos embalando, não nos deixa adormecer, porque a história é triste e parece que nós fazemos parte dela, quer queiramos quer não. Aqueles bonecos de barro, foram-nos apresentados e agora como nossos conhecidos, vivem  na nossa mente e é assim que nós imaginamos aquela pobre gente, que foi sacrificada por um grande ideal de colectivização, como se houvesse algo mais importante que as suas vidas e a sua dignidade.
As imagens reais deste despautério histórico, cometido em nome de uma putativa bondade de uma ideologia, ficaram registadas, cada uma à sua maneira, na memória dos sobreviventes e das testemunhas das atrocidades dos Khmers vermelhos, como Rithy Panh, o realizador Cambodjano. E também no celuloide dos excecutores. E se as imagens destes últimos, foram na esmagadora maioria apagadas, aquelas que ficaram gravadas nas memórias dos sobreviventes, são reconstruídas de forma singular, neste nosso encontro mágico com o filme, como um relato pungente de uma humanidade capaz do pior e do melhor.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

VERSÕES E DIVERSÕES

Ainda que com novas nuances, voltamos aos temas da cópia e do original, que nos entreteve em vários "posts" anteriores deste blog.
As novas nuances, são as deliberadas versões cinematográficas, mas poderiam ser teatrais ou até literárias, de obras anteriores, com intuitos à partida não fraudulentos, pretendendo ver os mesmos assuntos sob outras perspectivas e desta forma contribuir para um enriquecimento e aprofundamento dos conhecimentos humanos e artísticos e até para uma maior aproximação à "verdade". 
São muito curiosos os dois filmes que se revêem em seguida, porque primeiro o "original" e depois a "cópia", falam desta dispersão de pontos de vista, com que os mesmos acontecimentos são vistos e lidos por vários observadores da realidade e das razões objectivas ou subjectivas que sustentam essas leituras. E novas perspectivas emergem no acto da passagem da vida à arte, nesse milagre que faz de nós observadores privilegiados, porque estamos colocados num posto de observação, diria quase divino, donde podemos topar todos os personagens e suas ações, deduzindo os seus pensamentos e emoções, coisa vedada aos outros personagens que apenas dominam parte da "realidade", num dado momento.
Mas atenção porque nem sempre, essa visão de "anjos", nos impede também de sermos "enganados" e induzidos em erro. Basta pensar na génese e desenvolvimento de um filme.
O filme como produto final, é como se fosse um ser vivo, com a sua identidade própria e valendo-se por si próprio, mas como nas pessoas muitas vezes temos que regredir à sua "genética", para explicar certas características e comportamentos. E num filme essa génese, parte de uma ideia seminal, passa pela escrita de um argumento - a adaptação de uma obra literária, no nosso caso concreto - e depois a sua implementação com a escolha do "cast" e de todos os meios humanos e técnicos de suporte, terminando com a obtenção e edição dos fotogramas em rápida sequência, ou seja o nosso filme.
A "realidade" num filme é basicamente aquilo que vemos e sentimos e isso depende de nós e do filme. O que precede isto na escala evolutiva, de um e de outro lado, pode ter importância mas o decisivo é esta "realidade" nova, que resulta do nosso encontro com o filme. Sejamos claros, a realidade objectiva não existe no cinema, mesmo que seja documental ! O que existe, são versões ou expressões de subjectividade.
Se isto já define um filme de per si, imagine-se uma cascata de filmes sobre o mesmo assunto.
O "remake" cinematográfico, à priori, acrescenta um novo ponto de vista e no caso concreto que nos traz aqui, a complexidade é multiplicada, uma vez que o tema é precisamente "o ponto de vista". Ou seja, quem faz a nova versão, não só acrescenta um ou mais pontos de vistas diferentes sobre o filme em geral, na forma como é concebido, escrito e realizado, mas também revendo as "versões" dos personagens sob novos prismas, alarga os horizontes de análise.

 


A Akira Kurosawa (1910-1998), autor japonês de "Rashomon", pertence o mérito de ter concebido a obra original, em 1950, 14 anos antes do americano Martin Ritt (1914-1990), se ter atrevido a voltar à obra do mestre japonês, com o seu "The Outrage", de 1964. Obra verdadeiramente superlativa, "Rashomon" é um verdadeiro tratado psicológico -" O efeito Roshomon", entrou mesmo no léxico da disciplina - e um legado artístico colossal.
Num clima de tragédia grega e com laivos de Shakespeare, Kurosawa faz uma sagaz incursão nas motivações mais recônditas dos comportamentos humanos. O que leva o ser humano a mentir ou a distorcer os factos ? Porque motivos a imagem que temos de nós próprios e a que "vendemos" aos outros, nem sempre se coaduna com a realidade das nossas ações ? Até que ponto nos importamos com os outros e as suas razões ?
Com uma narrativa sólida e coerente, uma direção artística e interpretações convincentes e uma fotografia magistral de Kazuo Miyagawa, o mestre japonês, construiu um clássico  imperecível.


                             
Martin Ritt estava portanto consciente da tarefa hercúlea que tinha pela frente e sem medo ousou compôr uma versão ocidentalizada e mais contemporânea, que embora sem o fulgor do original, concede-nos um inesperado prazer em revisitá-la, desde que seja sem redutores e tolos preconceitos.
Nesta versão ocidentalizada descomprometida e adaptada ao Oeste americano, ainda que inteligentemente não se submetendo às convenções de um género marcado por dogmas pouco abertos a olhares alternativos, Ritt consegue passar a sua mensagem e tornar credível a sua "versão". Para o prazer que o filme proporciona, conta muito uma fotografia verdadeiramente genial de James Wong Howe. Como contam as soberbas interpretações de Paul Newman, Claire Boom (com a mais valia de ter estado antes na versão teatral) e Edward G. Robinson, não desfazendo de todo o "cast", que é irrepreensível.

☑ RASHÔMON - ÀS PORTAS DO INFERNO (1950)

"Rashômon" - título original em japonês.
"Às portas do inferno" (Portugal) "Rashomon" (Brasil).
Origem: Japão. Ano: 1950.
Realização: Akira Kurosawa.
Argumento: Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, adaptando os contos de Ryûnosuke Akutagawa, "Rashomon" e "In a groove (Num bosque)".
Com:Toshirô Mifune, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Takashi Shimura e Minoru Chiaki.
Cinematografia: Kazuo Miyagawa. Música:  Fumio Hayasaka. Produção: Minoru Jingo e Masaichi Nagata.
Género: Drama, crime. Duração: 88 minutos. Preto e branco. 
Sinopse
No japão feudal, do tempo dos samurais, um crime e as suas consequências são vistos de diferentes pontos de vista.




☑ THE OUTRAGE - ULTRAGE (1964)
"The outrage" - título original
"Ultrage" (Portugal) e "Quatro confissões" (Brasil).
Origem: EUA. Ano: 1964.
Realização: Martin Ritt
Argumento: Michael Kanin, adaptando do argumento original de Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, baseados nos contos "Rashomon" e "In a groove (Num bosque)", de Ryûnosuke Akutagawa.
Com: Paul Newman, Laurence Harvey, Claire Bloom, Edward G. Robinson, William Shatner e Howard Da Silva.
Cinematografia: James Wong Howe. Música Alex North. Produção: A. Ronald Lubin.
Género: Drama, Western, Crime. Duração: 96 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Um crime e as suas consequências são vistos de diferentes pontos de vista, desta vez, no velho Oeste americano. 
  
                                                              

"Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto."
(provérbio português)
Já agora, eu acrescento o meu.

domingo, 29 de dezembro de 2013

QUATRO NOITES, UM LIVRO E TRÊS FILMES

Primeira noite:
☑ NOITES BRANCAS, de Fiódor Dostoiévski (1848) 

"Noites brancas" - Título em português.
Autor: Fiódor Dostoiévski 
Origem: Rússia. Ano:1848.
Editora: Clube do Autor. Edição portuguesa: 2013
Nº de páginas: 136
Género: Ficção. Romance.

Sinopse
«Nunca nos esquecemos do primeiro livro que nos fez chorar de emoção, é como viver o primeiro amor. (…) Noites Brancas é mais do que um livro terno e perfeito: é uma lição de vida imortal.»
Margarida Rebelo Pinto.
Numa noite luminosa, numa ponte sobre o rio Neva, um jovem sonhador depara-se com uma mulher em lágrimas. Petersburgo está mergulhada em mais uma das suas noites brancas, um fenómeno que faz as noites parecerem tão claras quanto os dias e que confere à cidade a atmosfera onírica ideal para o encontro entre essas duas almas perdidas. Ao longo de quatro noites, o tímido jovem e a ingénua rapariga estabelecem laços intensos, mas o desenrolar romântico deste fugaz encontro pode estar ameaçado…
«Dostoiévski é um dos mais literários e cativantes romancistas de sempre»  The Washington Post Book World  ( in FNAC )


Um belo conto de Dostoiévski, escrito em 1848 antes da sua prisão. Nesta altura o escritor vivia uma fase atribulada da sua vida, nomeadamente no campo amoroso, sendo mais ou menos pública a paixão que dedicava a uma mulher casada, que fazia parte do seu círculo de relações.
Nesta obra, o autor parece projectar muito do seu mundo interior e das suas expectativas sobre o protagonista, um  pobre e solitário funcionário, que vagueando uma ocasião pela noite clara de S. Petersburgo, encontra Nastenka, uma jovem a chorar na ponte e de quem se aproxima. Nessa e nas três noites seguintes, ele aos poucos, tenta vencer a desconfiança da jovem em relação à sua pessoa e dessa aproximação e conhecimento mútuo, brota uma paixão pela moça, que não encontra retribuição, uma vez que esta já terá oferecido o seu coração a outro homem, por quem espera todas as noites na ponte. Ao homem sem nome, nada mais resta a não ser vê-la e partilharem entre si as suas vidas, um bocadinho cada noite e  sonhar com a possibilidade da rapariga, corresponder,  por fim, ao apelo da sua paixão.
Esta pequena história, tem muito a ver com o  clima mental e  emocional do escritor mas mesmo assim surpreende a sua aderência a um romantismo alheio ao fio condutor da sua obra. É possível no entanto, uma leitura alternativa defendendo  uma autocrítica no subtexto da obra, como se o autor assumisse a paixão romântica e as suas consequências, mas exagerasse propositadamente no carácter pueril do enredo e no trato afectado e lamechas do protagonista, como uma característica negativa, a evitar. Este sonhador de "Noites Brancas é considerado pelo autor uma “aberração social", como ele explica nas "Crónicas de Petersburgo", em 1847: "Não podendo o homem encontrar o seu lugar no mundo, “(...) , nasce a pouco e pouco aquilo a que se chama ‘sonhadorismo’, e o homem deixa de ser homem, torna-se uma espécie esquisita... — o ‘sonhador’ (...). A realidade produz no coração do sonhador uma impressão grave, hostil, que então se apressa a meter no seu cantinho secreto e dourado, que na realidade é, não raro, poeirento, desmazelado, desarrumado e porco. A pouco e pouco, o nosso rebelde começa a alienar-se dos interesses comuns e, gradualmente, imperceptivelmente, começa a embotar-se nele o talento de viver na vida real.”
Mais do que de um amor não correspondido, este livro trata da solidão e da reação pessoal que dela enferma, com comportamentos que vão desde a inércia e o conformismo até ao  sonho alienante, mais afastado da realidade. O tom piegas e pegajoso do personagem apaixonado, não deve ser lido como uma imagem ou apologia do autor, que no entanto, por experiência pessoal vive uma situação idêntica e vislumbra no carácter imaginativo da ficção, uma oportunidade de retratar os exageros e desmandos da condição de enamoramento, que é em si mesma imaterial, desmedida e absolutamente ridícula ao filtro do pensamento racional. 
No meio termo, o livro - sobretudo pela parte de Nastenka- não deixa de valorizar o lado positivo do encontro e da partilha de vida, mesmo que não implique um desfecho romântico.

Segunda noite:
NOITES BRANCAS, de Luchino Visconti (1957)

"Le Nottti Bianche" - Título original em italiano.
"Noites brancas" - Título em português (Portugal e Brasil).
Realização: Luchino Visconti.
Argumento: Luchino Visconti e S. Cecchi D'Amico, baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Maria Schell, Marcello Mastroianni e Jean Marais.
Origem: Itália, França. Ano: 1957. Produção: Franco Cristaldi.
Cinematografia: Giuseppe Rotunno.
Música: Nino Rota.
Género: Drama. Romance. Duração: 97 minutos. Preto e branco.
Sinopse
Um triangulo amoroso em que o passado  marca profundamente o presente. Mario (Marcello Mastroianni) é um pobre e solitário funcionário destacado para Livorno. Numa noite clara, vagueando pelas ruas, ele encontra Natalia (Maria Schell) chorando numa ponte. Ela esperava, noite após noite, pelo apaixonado (Jean Marais) que lhe prometera voltar. Mario acompanha Natalia, ajuda-a a livrar-se de indesejáveis, distrai-a, dança com ela e apaixona-se por ela...
Será que ele conseguirá conquistar Natalia, afastando-a de um passado e de um homem que provavelmente nunca regressará ?
                                                       
Por muitos considerada uma obra menor de Visconti, talvez porque o mestre se atreva neste filme, a deixar o seu amado neorrealismo em banho-maria (Schell), servindo-se de um cenário inteiramente construído no estúdio da Cinecittà e inovando numa abordagem estilizada e etérea do conto de Dostoiévski, a cuja adaptação meteu braços e ideias, conjuntamente com Cecchi D'Amico. 
Visconti encerrando-se no seu estúdio, de decores transparentes e revestido da necessária aura lunar das fábulas e dos contos de fadas, pôde controlar a economia do filme em todos os seus variados aspectos e neste sentido, "Noites brancas" afigura-se como o anti - "Sentimento", um filme que com a sua magnificência realista, quase arruinou a carreira do realizador. 
A atmosfera romântica do conto de Dostoiévski é de forma sublime transportada para o filme, com o cenário de uma beleza irreal e fantasmática, servindo de fundo à mise-en-scène teatral e aos diálogos expressivamente melodramáticos dos personagens. No aspecto formal, a fotografia a preto e branco, de Giuseppe Rotunno é um elemento essencial na consistência estética e somos presenteados com imagens de uma beleza espectral, raramente vislumbrada na sétima arte, testemunhando as deambulações nocturnas pela cidade, ao ritmo das conversas, das confissões e das memórias de Natalia e de Mario. A música de Nino Rota, enquadra-se igualmente neste conjunto coerente que Visconti apresenta no produto final.
Marcello Mastroianni, com o seu carisma e competência, encarna um homem frágil e imaturo, um solitário noctívago que vive verdadeiramente de noite e vegeta de dia. Natalia é muito bem defendida por Maria Schell, premiada em Cannes três anos antes pelo filme de Helmut Kautner, "A última ponte (1964). Entres os dois desenvolve-se a clássica relação de amor não correspondida, com o vértice decisivo do triangulo a pertencer ao misterioso amante de Natalia, aqui um quase fantasma Jean Marais, por milagre arrancado por momentos ao imaginário quase exclusivo do cinema de Jean Cocteau e explicando o investimento francês na produção. Poder-se-á dizer com propriedade, estarmos perante mais uma meditação sobre o acto de  enamoramento que é em si mesmo risível e ridículo do que uma  reflexão sobre os mistérios do amor e as suas consequências. A beleza deste filme é  uma marca irrefutável mas constantemente ameaçada pela implausibilidade e pelos excessos melodramáticos de uma narrativa algo fragmentária, onde colam mal, alguns elementos neorrealistas superficiais e metidos à pressão, como a figura da prostituta e dos  sem abrigo nas margens do rio. No entanto, estamos perante um cinema que respira magia em cada instante, sublimada pela maravilhosa fotografia de Giuseppe Rotunno e pelo cenário encantador da Cinecittà.

Terceira noite:
☑ AS QUATRO NOITES DE UM SONHADOR, de Robert Bresson (1971)
"Quatre nuits d'un rêveur" - título original em francês.
" As Quatro noites de um sonhador" - título em português.
 Realização: Robert Bresson.
Argumento: Robert Bresson, baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Isabelle Weingarten, Guillaume des Forêts e Jean-Maurice Monnoyer.
Origem: França, Itália. Ano: 1971. Produção: Gean Vittorio Baldi.
Cinematografia: Pierre Lhomme.
Música: F. R. David.
Género: Drama. Romance. Duração: 87 minutos. Cor.
Sinopse
O sonhador chama-se Jacques e é um jovem pintor parisiense que numa noite, encontra por acaso, uma mulher em acto de iminente  suicídio, na pont-Neuf. Essa mulher chama-se Marthe e pouco a pouco, Jacques vai descobrindo as  razões para o comportamento desta mulher, apercebendo-se que ela todas as noites, espera na ponte, pelo seu amante ausente que lhe prometera voltar um dia. Nas quatro noites que encontra Marthe, Jacques, sonha com o amor dessa mulher, esperando que nunca se concretize o reencontro com o homem ausente... 
                                                       
                                                           

A cena de abertura do filme  introduz-nos a figura do sonhador, Jacques, um jovem imaturo que encolhe os ombros ao destino. E logo  o seu temperamento se mostra ademais errático, escolhendo primeiro  o campo, onde se passeia despreocupado, dá cambalhotas infantis, canta e assobia, alheando-se da realidade social envolvente, e depois na  cidade  onde se revela um pintor no mínimo muito sui-generis. Na casa onde habita em Paris, acumula quadros inacabados e apercebemo-nos que a sua inspiração, dura sempre apenas breves segundos, aqueles que dedica a umas fugazes pinceladas monocromáticas, no interior de formas predefinidas, aparentemente esboços de sonhadas musas. E nas ruas da cidade, podemos comprovar como a sua imaginação é realmente pobre ao contrário da sua ambição que é desmedida, pois o artista anda mesmo à procura da mulher ideal  e  a avaliar pelas escolhas visuais o seu gosto é deveras refinado. Nas ruas de Paris demonstra uma fixação por bonitas e desconhecidas mulheres, que resolve seguir, de forma inconsequente, pois não consegue esconder a sua extrema timidez. No fim de mais uma frustrante perseguição, um dos seus colegas pintores, faz-lhe uma visita no seu lar-atelier e em conversa com o  sonhador, brinda-nos com uma preleção sobre o artista, o objecto e a arte, que soando assaz retórica e irónica é no entanto, uma das chaves interpretativas para o filme, ou melhor, para a forma como Bresson o concebeu. Trata-se de ver a obra de arte como resultado de "uma reunião entre o artista e o seu conceito. O importante não é o artista nem o objecto, mas o gesto que eleva a presença do objecto, que está suspenso no espaço que o delimita e de facto o suporta. Não é o artista e o objecto que estão lá, mas sim o objecto e o artista que não estão lá. É o desaparecimento visível que faz a tela". Na forma enfática e mecânica com que estas herméticas asserções nos são apresentadas, intercaladas significativamente com a pergunta "compreendes ?", perpassa uma fina ironia e  dir-se-á que neste filme, Bresson quer reflectir sobre essa busca da elusiva transcendência do amor, como uma imagem criada que se torna visível pelo gesto dessa procura, mas essa aparição implica o apagamento do artista e do objecto, ou seja, dos amantes originais. 
Mas a Bresson não  interessa tanto a apologia dessa transcendência  quanto a desconstrução do mito do ideal romântico do amor. E enquanto meditamos no significado das palavras metralhadas mecanicamente pelo intelectual amigo do sonhador, a narrativa conduz-nos à primeira das noites, aquela onde se dá o encontro  entre Jacques e Marthe, a mulher misteriosa em cima da ponte, fazendo crer a toda a gente, que estaria prestes a cometer suicídio. A ponte e a típica donzela em perigo, do imaginário romântico. Ora aí está a aplicação da primeira parte do enunciado teórico anterior: ao resgatá-la, Jacques passa a ter por fim o seu objecto de desejo. Será ele  capaz daquele gesto decisivo que se impõe ? E quando Marthe lhe pede para contar a sua história, ele é igual a si próprio e responde: "Qual história ? Não tenho nenhuma história." Na noite seguinte - a segunda noite - em que ambos combinaram encontrarem-se naquela mesma ponte, começa a história de Marthe, que ao contrário da história de Jacques é repleta de pormenores importantes. É um comentário da memória idealizada e ao mesmo tempo a recentragem no objecto, que Bresson faz emergir subtilmente do subtexto. Ficamos a saber que a pequena perdeu-se de amores por um marmanjo, que foi estudar para Yale, prometendo voltar um ano depois àquela mesma ponte onde se separaram. Porque a ponte serve tanto para unir como para separar. E é por isso que ela vai lá todas as noites e já passou o tempo combinado. Depois em deliciosos flashbacks, Bresson remete-nos para o passado daquela relação, o modo como se conheceram, a atração mútua, o desejo crescente e a sua materialização. Pelo meio, Bresson faz questão de nos presentear com doses generosas de humor, que não lhe conhecíamos das circunspectas obras anteriores. A este respeito, é impagável a cena do cinema. É preciso lembrar que foi o amado de Marthe, que ainda em fase de sedução, lhe ofereceu bilhetes para o filme "The bonds of love" (As obrigações do amor) para ela ir com a sua avó, já que ele não podia. E o filme, começa ainda antes de rodar na tela, cá fora na entrada, com a cena dos fotógrafos a "flashar" os convidados VIPs  e quiça também o próprio elenco em " Hollywood mode" e depois já com o filme a correr, vemos um dos artistas a levar  com uma rajada de metralhadora no coração (!) e depois um tiro na testa e ainda ter alento para sacar com gestos bem coordenados, uma fotografia da amada de um dos bolsos do casaco para morrer a olhar para ela. Logo depois, Marthe desabafa que foram alvo de uma armadilha, enquanto a avó está banhada em lágrimas. E desta forma, Bresson brinca com com o amor romântico. Como brinca também, quando põe o nosso sonhador desmiolado  a fazer gravações de frases ocas sobre o amor e a soletrar o nome "Marthe", para ouvir depois repetidamente a gravação.
E com o tempo, embora Marthe continue obcecada com o seu amado, apercebemo-nos de que apesar da lengalenga romântica, ela vai cedendo por dentro e por fora quando realmente Jacques se chega à frente e afirma corajoso: "Que é que se passa ? O que se passa é que eu te amo !" E decerto, se o ausente não resolvesse aparecer, outros interesses falariam mais alto...
Mas apesar de tudo, no fim faz-se a justiça, não tanto à medida dos grandes ideais, mas indo ao encontro das mais sábias deduções da vida real, porque o nosso sonhador nunca foi capaz de um gesto à altura do másculo amante da donzela em perigo, que decerto no devia e havia, ganhou a parada.  Apesar de uns tíbios apalpanços, e de uma declaração à homem, Jacques nunca foi capaz de lhe atiçar o desejo e mudar o rumo  magnético do seu amor. Tarde piaste, bem feito !
Bresson, num registo diferente do habitual, entre o sardónico e o condescendente, mas definitivamente importante e recomendável.

Quarta noite:
DUPLO AMOR, de James Gray (2008)


"Two Lovers" - título original em inglês.
" Duplo amor" - título em portugal e "Amantes" (Brasil).
 Realização: James Gray.
Argumento: James Gray e Ric Menello. Sem crédito, o ser baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Joaquin Phoenix, Gwineth Paltrow, Vinessa Shaw, Elias Koteas, Moni Moshonov e Isabella Rossellini.
Origem: EUA. Ano: 2008.
Cinematografia: Joaquin Baca-Asay.
 Género: Drama. Romance. Duração: 110 minutos. Cor.
Sinopse
Em Brooklyn NY, nos dias de hoje, Leonard é o  filho único de um casal de emigrantes  judeus russos, que têm uma lavandaria. Abandonado pela noiva e com um distúrbio bipolar que se agrava, tenta o suicídio. A família burguesa, dá-lhe todo o apoio e apresenta-o a Sandra, como eles de origem judaica e filha de um parceiro nos negócios, sendo desejado por ambas as famílias uma união entre os dois. A doce e ajuizada Sandra revela a Leonard, que já há algum tempo sente paixão por ele. Mas Leonard, deixa-se encantar por Michelle uma deslumbrante e instável vizinha que lhe dá atenção mas não o seu coração porque esse pertence a um homem casado, com quem  ela tem um caso.
                                                        

A primeira constatação sobre este filme é que a sua putativa relação com as "noites brancas" de Dostoiévski, não é assumida pelos autores do argumento e isso é de resto uma evidência da narrativa, embora algumas semelhanças não pareçam ser meras coincidências. E de resto, James Gray não esconde por um lado uma admiração (até pelas suas raízes comuns) pelo retratista psicológico por excelência que é Dostoiévski e por outro lado, é conhecido o seu fascínio pela obra homónima de Visconti, de quem admite alguma inspiração, pelo menos na estruturação das relações  com o espaço físico, expresso não tanto na deambulação nocturna que aqui não acontece, mas em certos pormenores de enquadramento: o terraço em vez da ponte, como lugar de encontro, com a madrugada a raiar e o claro da névoa em fundo, lembrando as "noite brancas" de Visconti... As repetidas cenas de comunicação visual e verbal entre Leonard e Michelle, nas suas janelas, que dotam a narrativa de um senso de distância, de vácuo (e também um pouco de voyeurismo à Hitchcock...) e se quisermos de "nonsense" e até  ridículo, como uma característica do estado de enamoramento, apesar de toda a ingenuidade, afectividade e doçura de um homem desorientado pela paixão.
A segunda observação, é que estamos perante um exemplar estudo psicológico das personagens enquadradas realisticamente nas suas coordenadas sociais e familiares. E neste ponto, o clima não é alheio a  Dostoiévski e também e sobretudo, à obra - se podemos chamar obra a 4 filmes... - de James Gray. Nos filmes anteriores, estamos no universo muito particular do realizador, ao fim e ao cabo, o das suas raízes, ele que é um neto de emigrantes russos em NY. E nesse universo é crucial o papel da família e os conceitos de solidariedade e de lealdade e também de honorabilidade, embora esta, muitas vezes apenas como aparência ou fachada. E não é por acaso que Joaquin Phoenix entra neste e em mais dois dos seus filmes anteriores, "As teias da corrupção", de 2000  e "Nós controlamos a noite", de 2007, já que Gray assume o carácter autobiográfico no que diz respeito aos personagens, interpretados por alguém que diz ser um duplo de si mesmo...
Os personagens de Gray e neste particular Leonard, vivem na tensão da fuga e do retorno a um núcleo/prisão que pode ser a família, (e a imagem do filho  pródigo é recorrente) ou a pessoas, ideias ou projectos. E no exemplo mais extremo, na fuga da vida (o suicídio) e o consequente retorno ou para sermos mais precisos, o renascimento - a água onde Leonard  quer pôr fim à sua vida, é a também a água que arrefece os instintos e purifica a alma, no sentido batismal do termo...
Esta ideia do retorno, consubstancia uma geometria circular no pensamento de Gray. A cena inicial é a da tentativa de suicídio, mas ela bem poderá ser visto no fim do filme e o contrário ser exequível e verossímil. O próprio triangulo amoroso convencional é rejeitado dentro desta mesma lógica e o aparente losango do filme é tão variável, que está sempre a metamorfosear-se  num círculo perfeito, aquele que melhor expressa o espaço das relações entre estes personagens, cujos movimentos denotam apenas uma liberdade condicional e estão sempre equidistantes de uma referência central ( a família, a honra, o compromisso).
Num trabalho de pormenor e de mestria que já começa a ser um hábito em James Gray, este filme revela de forma refulgente, as idiossincrasias da alma humana, os sabores e dissabores da paixão e a estranha humilhação e ridículo que subjazem ao acto de estar-se apaixonado, sem se poder calcular as suas consequências.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

☑ GHOST WORLD - MUNDO FANTASMA, de Terry Zwigoff


Da BD ao Cinema 


"Ghost World" - Título original.
"Ghost World - Mundo fantasma" - Título em Portugal.
"Mundo cão" -  & "Ghost World - Aprendendo a viver" - Títulos  no Brasil.  
Origem: EUA, UK, Alemanha. Ano: 2001.
Linguagem: Inglês.
De: Terry Zwigoff (Realização e argumento com Daniel Clowes - Baseado na BD "Ghost World" de Daniel Clowes).
Com: Thora Birch, Scarlett Johansson e Steve Buscemi, Ileana Douglas, Bob Balaban, Teri Garr e Brad Renfro.
Cinematografia: Affonso Beato.
Música: David Kitay.
Género: Comédia & Drama ("Dramedie"). "Coming-of-age" drama.
Sinopse
Esta é a história de duas  amigas íntimas,  Enid e Rebecca, vivendo nos subúrbios de LA e enfrentando os desafios do fim da adolescência e da transição para a vida adulta. Acabado o Liceu, decidem deixar de lado a carreira universitária em prol de empregos pouco ambiciosos e mal pagos. Nesta e muitas outras posições que  assumem  conjuntamente como siamesas, manifestam a sua radical diferença em relação às suas colegas e demais membros da comunidade. Enid (Thora Birch) é sensível, inteligente e cínica,  cansada de viver em casa com o seu desafectuoso pai (Bob Balaban) e a sua irritante namorada (Teri Garr). A sua amiga, Rebecca (Scarlett Johansson), é muito bonita e mais prática e optimista e não lhe conhecemos os familiares. Vivendo num meio  rígido e medíocre, que não reconhece a criatividade e a diferença, elas de certa forma, sentem-se invisíveis e auto excluem-se da vida social e vivem no seu "mundo fantasma", do qual só saem para desafiar  as normas vigentes e brincar com o "status quo" estabelecido. Assim foi o caso, quando conheceram Seymour (Steve Buscemi), um geeky cinquentão, amante de Jazz e de Blues e colecionador de vinil e de outras velharias. Enid descobre nesta estranha figura de homem isolado e frustrado, com quem partilha o desassombrado desgosto pelo mundo, um interlocutor privilegiado e alguém a quem poderia ajudar, mal sabendo que nesse processo de conhecimento mútuo, também ela poderia ser ajudada...
                                                      
                                                       

Ora aqui está um filme que poderá enganar os menos avisados. Filme de adolescentes, com adolescentes e em regra para adolescentes, é geralmente sinónimo de um saco bem cheio de lugares comuns, apimentados com as inevitáveis graçolas  burrificantes sobre sexo, repetidas ou recauchutadas "ad náusea". Acontece que este filme é um verdadeiro oásis nesse deserto de ideias, que tem servido de paisagem visual quase única e imutável nas últimas décadas.
O realizador Terry Zwigoff, já tinha dado sinal  que a sua postura no cinema não se coadunava com abordagens simplistas e monolíticas, quando em 1994, surpreendeu com o documentário "Crumb", um retrato intimista da vida e obra do polémico cartoonista R. Crumb. E é exatamente inspirado em figuras como Crumb e nas complexas personagens que vivem nos quadradinhos desta BD alternativa, que Zwigoff nos proporciona uma visão refrescante e profunda dos problemas da transição da adolescência para a vida adulta. Baseado num "comic" de Daniel Clowes, outro nome importante da BD não "mainstream", que colabora também na adaptação, "Ghost World" vem igualmente provar que o mundo dos "comics", vai muito para além dos estafados "clichés", veiculados pelas ações de heróis justos e invencíveis, adornadas com doses superlativas de efeitos especiais.
A BD de Daniel Clowes, faz eco  de um mundo multidimensional, habitado por personagens comuns a braços com problemas bem reais. Zwigoff e Clowes, não se limitaram em plasmar na tela, o "script" da BD original, priviligiando uma nova linha narrativa  recentrada na relação entre Enid e  Seymour. E o que resulta é um retrato intimista e sensível dos problemas do crescimento e amadurecimento, na fronteira  entre a adolescência e a idade adulta e sobretudo no contraponto entre  os diversos níveis de consciência com que são encaradas estas duas fases da vida humana. 
Um dos méritos do filme assenta na recusa do enunciado abstracto e generalista dos problemas dos jovens, das suas expectativas e do peso das primeiras decisões, ignorando a dimensão pessoal e a diferença. Este filme expõe com realismo a tensão entre interioridade e alteridade e exprime  com desassombro a oposição muitas vezes assumida como justaposição, entre a diferença e a alienação.
O milagre de um filme como  "Ghost world - mundo fantasma" ,  consiste em tornar visivel o invisivel e tocável o que parece inacessivel ao tacto, de mundos em que a diferença e a solidão são os únicos  salvos condutos entre as suas personagens, sejam elas "geeks" cinquentões em vias de desintegração existencial ou "nerds" encostados à parede das decisões.

domingo, 8 de dezembro de 2013

QUANDO O FAROL BRILHA, ESTAMOS SALVOS !


No princípio era o cinema, depois Deus criou a televisão.
No principio, não havia sexo, só imaginação. A imaginação, também não ia muito longe nesse princípio. Depois começou a levar e a guiar a mão para o pecado "solitário".
Quase não havia sangue, só tiros e murros, exceto nos filmes de romanos, mas esses eram mesmo assim.
Víamos filmes aos fins-de-semana, muitos deles  em capítulos.
Aproveitávamos para trocar revistas de banda desenhada à porta. Sim, havia a fotografia e desenhos com sexo mais ou menos explícito.
Os filmes, então estavam divididos, quanto ao acesso, em fitas para maiores de 6,14,18 e para todos. Em que se baseava esta divisão? Grau de dificuldade? Não, errado !
Pura e simplesmente, na quantidade de corpo feminino visível ou carícias trocadas entre homens e mulheres. Repito e sublinho: entre homens e mulheres. Só existia esse tipo de cambio sexual. Claro que havia homens que gostavam de homens, mas isso estava fora do cinema e do quotidiano. Entre mulheres, só muito mais tarde é que foi inventado.
Pensando bem havia mais coisas que não existiam, como por exemplo, pretos a fazer de "artistas" principais ou pretas divas. Também não me lembro de ver índios a comprar coisas ou a casar. Enfim, eles estavam mais destinados a morrer nos filmes e isso faziam-no muito bem.
Crescemos e já às vezes, iludíamos a censura, entrando para ver seios desnudos que eram muito grandes e bonitos. Já por vezes, conseguíamos tocar e empernar com a vizinha do lado, pois muitas sessões eram contínuas e sem lugar marcado. Vizinha disse bem. Claro, que havia uns "esquisitos" que também tentavam empernar connosco, mas a gente (nem toda) fugia para outro lugar.
Os filmes, também cresceram e agora, por vezes, tinham três horas seguidas e muitas mulheres com saias curtas. Sempre os romanos.
Havia agora uma espécie de filmes que não nos interessava e que também eram proibidos. Os pais (alguns) falavam disso e de um modo geral concordavam que o fossem. Eram muito chatos. Curioso, até aí os filmes não eram nunca chatos e gostávamos de todos, uns mais, outros menos. Era melhor que ver na televisão em que só davam muito tarde ou filmes velhos. A televisão, era para outras coisas. Músicas e séries e depois futebol, embora raramente.
Acho que continuo a preferir os filmes sem sangue e sexo às escancaras, agora que sei que morrer é muito poucas vezes glorioso e o sexo uma coisa que só interessa quando é a sério e a quem o faz. Deve ser da idade e de já não ter revistas para trocar à porta do cinema. Aliás, o cinema já não tem porta.
Tenho mais imaginação, acho eu...


CHINA - UM TOQUE DE PECADO, de Jia Zhang-Ke (2013)



Acordei com o filme ás voltas na cabeça.

Um filme, em que a violência é uma constante sobre os personagens, como uma lei de Arquimedes e causa uma reação como tal.
Personagens que vagueiam, sem laços que os prendam a uma estrutura e que não resistem e explodem. Aqui, a violência tem uma função. Mesmo assim, poderia, creio eu, ser evitada na sua forma tão obscena. Creio que essa é uma das fragilidades do filme, que  não obstante é um excelente filme.