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terça-feira, 15 de outubro de 2013

LIKE SOMEONE IN LOVE, de Abbas Kiarostami

            Como alguém apaixonado pelo cinema



"Like Someone in love" (Japão, França - 2012).
Linguagem: Japonês.
De: Abbas Kiarostami (Argumento e Realização).
Com: Rin Takanashi, Tadashi Okuno, Ryo Kase, Denden e Reiko Mori.
Cinematografia: Katsumi Yanagijima.
Soundtrack: Duke Ellington, John Coltrane, Ella Fitzgerald.
Drama. 109 minutos. Cor.
Sinopse
Em Tóquio uma rapariga, estudante universitária de dia e prostituta à noite, tenta levar a sua vida para a frente, por entre a desconfiança e ameaças crescentes do noivo, quando estabelece uma inesperada conexão com um cliente, um velho  professor universitário.





"Quando se sabe que a resposta é uma mentira, é melhor não perguntar nada."
(O professor, em diálogo como o noivo)

Abbas Kiarostami, é talvez, o mais universal dos cineastas vivos e não seria preciso este filme rodado em Tóquio, nem o anterior em Itália, para o demonstrar. Tampouco a sua gloriosa fase Iraniana, retira o sentido pleno a esta asserção, porquanto o que confere amplitude à sua obra, não é o espaço físico (que é também muito importante)   mas sim a matéria humana e  a extrema delicadeza e perspicácia com que aborda o mais simples episódio do quotidiano, fazendo sobressair dele as dimensões e  os significados que se escondem nas aparências.
Por isso, ver um filme de Kiarostami é o mesmo que saborear um rebuçadinho, especial e saboroso , com efeitos imediatos nas papilas gustativas e um pouco mais lentos mas mais duradouros  a nível do córtex cerebral, esta última ação, como se sabe ausente ou manifestando-se de forma assaz perniciosa  em numerosos  "rebuçados" em circulação.
Neste filme, Kiarostami serve-se de uma história de contornos simples - uma rapariga estudante de dia e prostituta à noite, com dificuldades em  conciliar esta vida dupla - e com a  sensibilidade que lhe é característica, passa ao lado da sordidez e dos moralismos fáceis e induz-nos a ver a realidade  de outros pontos de vista. E o que nós vemos é antes de mais imagens de rostos e as suas expressões, porque como Kiarostami referiu numa entrevista recente (Público-Ípsilon, 27 de Setembro de 2013) a sua medida de representação não é o diálogo mas sim a expressão facial e ele não tolera especialmente o "overacting", como se viu quando resolveu dispensar dois atores profissionais (para os papeis do professor e da prostituta) em detrimento de dois outros amadores (o do professor entregue a um figurante profissional, que acabou o filme a pensar que apenas fazia um pequeno papel, pois Kiarostami não entrega o argumento completo aos seus atores e atrizes, apenas as partes necessárias do guião).
Por consequência, estamos perante um filme caracteristicamente orientado pelas personagens e tudo o que é possível decifrar resulta das suas ações, expressões e interações. Os diálogos são importantes, mas mais importante e muitas vezes constituindo  a chave da narrativa é o modo como os diálogos se adequam ou não às expressões de quem fala, ou não fosse Kiarostami um mestre na ocultação e na subversão do real, através da ambiguidade manifestada   pelos seus personagens.
E diga-se em abono da verdade, que a escolha dos atores e atrizes revelou-se certeira, porque eles são extraordinários na forma como expressam os  estados de alma das suas personagens, nada parece falso, tudo natural e sentido.
A cinematografia é uma das assinaturas que permitem reconhecer Kiarostami e embora este filme conte com o Japonês Katsumi Yanagijima na direção de fotografia, é o dedo invisível do Iraniano que aponta o caminho. Kiarostami tem uma especial predileção por planos, sequências e cenas, concebidas utilizando carros, geralmente em viagens, servindo-se de câmaras montadas no "tabelier" ou no exterior do veículo, fixas ou em "travelling". Assim temos acesso a um verdadeiro "palco teatral", onde as expressões dos personagens sobressaiem em magníficos close-ups e os planos-contraplanos se sucedem com a dinâmica dos  diálogos.  E Kiarostami permite-se ainda  brindar-nos com excelentes projeções dos espaços envolventes - edifícios, sinais de trânsitos, luzes - nos vidros dos carros, não meramente como casual acessório estético, mas muitas vezes como medida de enquadramento/desenquadramento espacial ou de  contraponto emocional às próprias cenas. E de forma similar para os sons da envolvência.
São magistrais os planos de abertura do filme no bar. A personagem principal é nos apresentada com a sua voz ao telefone, ela que está fora do plano e só entra quando convidada por outros, como se desde logo se definisse pela sua fragilidade e dependência.
Densa  e comovente, é a sequência da viagem noturna da rapariga no táxi,   enquanto ouvia as mensagens da avó e a procurava com o olhar. A avó, outra personagem projetada para fora do plano, mas insistentemente querendo entrar no núcleo da história. Tal como a vizinha do velho professor, que numa primeira instância é nos revelada pela voz, numa segunda pela presença virtual atrás da cortina, através da qual vê (vemos) a moça ferida e por fim à janela, corpo e voz, trazendo mais achas de um quotidiano ordinário e umas quantas frases misteriosas, para a fogueira do filme.
Filme de (meias) verdades e mentiras, de equívocos e aparências em que os papéis se subvertem facilmente. O professor idoso, que ainda se julga com energia para aventuras, transmuta-se no avô solícito, enquanto que a rapariga da vida dupla,  no início prestadora de um serviço sexual, assume por fim o papel de neta de ocasião, recebendo do velho, o auxílio esperado de um avô.
Kiarostami recusa-se e bem a ser explicativo, excluindo algum didatismo de circunstância, e mesmo assim não inocente, de algumas referências, como a célebre pintura da rapariga que ensina o papagaio a falar e também algumas interessantes  questões sociais e filosóficas, aquando da conversa entre o velho professor e o noivo da rapariga. Os espaços em branco ou em tons de cinzento, se quisermos, deixados por Kiarostami nas suas famosas elipses, principalmente naquela após a noite do velho com a rapariga, são para preencher com a nossa vivência da vida que se cruza com a(s) vida(s) deste filme, e como Kiarostami frisou bem nessa entrevista citada anteriormente,  o filme não é mais dele, sendo nosso a partir do momento em que o vemos.
Por mim, refastelo-me lá nessas nuvens cinzentas, como se fora o sofá onde vi o filme, enquanto  me delicio de novo com a excelente  música oferecida por ele. 

"Ultimamente vejo-me a contemplar as estrelas, ouvindo guitarras como alguém apaixonado; Às vezes, as coisas que faço surpreendem-me, principalmente quando tu estás perto de mim. "
(Ella Fitzgerald, na canção que dá título ao filme)

P.S

É criminoso usar um trailer para este filme.

2 comentários:

  1. É um bom filme. Não sei se reconheço a assinatura do realizador de outros carnavais, mas reconheço o risco de colocar a câmara em locais menos usuais e homenagear ao mesmo tempo outros mestres que o fizeram. Estou a reportar à cena da escada em que a rapariga espera pelo professor que foi á farmácia e é vista através de um véu, que é da janela da vizinha bisbilhoteira e que se vem afinal revelar uma velha admiradora do professor. Magnífica sequência de cinema, Também a forma como desce as escadas da sua casa e as paragens de transito "desnecessárias" são e estão para se sentir e substituir as possíveis e essas sim, inúteis cenas para encher.
    Vale a pena perder tempo com filmes assim.

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  2. "Cenas para encher" é o que não existe no cinema de Kiarostami, ele que é um minimalista por excelência. O que lá está tem um sentido quase orgânico como um "real -time" que faz muita gente distrair-se e desistir, porque isso está ausente do cinema convencional, em que se exigem cenas fora do comum ou com uma lição de moral implícita, que eles (gente dos blockbusters) não vislumbram neste cinema. É o problema da arte e do entretenimento, como já debatemos antes. Não é fácil compreender e aceitar estas opções que são legítimas (evitar e desistir/adormecer). Siga a festa !

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