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domingo, 4 de agosto de 2013

ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA ? - DE CAIO ABREU A GUILHERME PRADO E VICE-VERSA

A propósito de um livro e de um filme com o mesmo título, que se descobriram um após o outro, questionam-se uma vez mais as relações entre literatura e cinema.
 
À partida, os campos estariam bem balizados. Literatura é literatura, cinema é cinema. Duas linguagens distintas, duas formas singulares de ver e interpretar o mundo. O mesmo objecto, diferentes visões.
A realidade é no entanto, um pouco mais complexa, uma vez que no livro de Caio Abreu, não só abundam as referências ao cinema, a propósito do mais corriqueiro episódio do quotidiano, como a sua estrutura narrativa está embebida de uma visão cinematográfica, desde a composição das personagens até ao desenrolar da  ação, como se as teclas que o autor digita, manobrassem ao mesmo tempo uma câmara oculta.
E o filme de Prado, embora se esforce por vincar uma autonomia da forma e do conteúdo, até pelas soluções díspares que concebe para as personagens e para o enredo, deixa-se também  seduzir pelos elementos literários, plasmando o processo de criação literária e jornalística, na própria narrativa cinematográfica. De modo que ao ler-se o livro de Caio Abreu, para além do saborear do texto nas suas inúmeras facetas, prazer intrinsecamente literário e insubstituível por qualquer outra forma de comunicação, somos também colocados perante uma tela  de cinema e não podemos fechar os olhos, o filme está ali, as palavras e as frases, transmutam-se em sons e imagens e nós para além de leitores somos também audiência, não fazemos parte do "cast", como num livro mais tradicional, onde podemos atrever-nos a ser diretores de fotografia , neste livro quanto muito podemos ser auxiliares da iluminação, porque de tudo o resto Caio Abreu cuida ! 
Mas apesar dos "raids" que cada um faz no "território" do outro, para além das pontes entre linguagens tão díspares, as especificidades do livro e do filme acabam por se impor, resultando em obras auto-referenciáveis que se podem (e devem !) ler/ver de forma  autónoma. De modo que é legítimo admitir que o filme que Prado  nos oferece, não é aquele que passa na tela de Caio e que os caminhos que levam à Dulce Veiga que todos procuramos, não são os mesmos. E como corolário, será que é a mesma mulher que vamos encontrar ?
Por isso, vamos por partes. Primeiro:
Dulce Veiga, o livro...
                               
                                              Outra coisa... 


"Onde andará Dulce Veiga ?"
De Caio Fernando Abreu, 1990.
Edição Portuguesa da Quetzal (2012).
Nº de páginas: 280.

"Seu estilo é uma lição de como as feridas tristes podem ser tratadas num texto esplêndido."
Segundo Caderno

"Próximo do filme negro, e adaptado ao cinema em 2008, "Onde Andará Dulce Veiga?" (um romance B) tem como personagens principais uma mulher fatal - a atriz e cantora que provocara um curto furor e que desaparecera nos anos 1960 - e um homem em decadência, moralmente ambíguo - o jornalista e narrador da história - que é incumbido de investigar o misterioso desaparecimento da diva, nos anos 80. A estes junte-se ainda a filha de Dulce Veiga, uma roqueira underground lésbica. Na demanda, que é também uma exploração interior do narrador, descemos ao submundo da música, das drogas, da homossexualidade e da prostituição, e percorremos o Brasil até à floresta amazónica, numa travessia tão violenta quanto poética."

 Caio Fernando de Abreu, escritor e jornalista  Brasileiro, homossexual assumido, morreu em 1996,  vítima de SIDA. Reconhecidamente um dos maiores expoentes da moderna literatura Brasileira, admirador confesso de Clarice Lispector, da qual bebeu o culto da diferença radical, publicou mais de uma dezena de livros entre romances, contos e peças de teatro, para além de numerosas crónicas em jornais e revistas.

Publicado em 1990, Onde andará Dulce Veiga ? é um romance que se impõe pela diferença na forma e no conteúdo. Numa intriga desenhada assumidamente ao jeito de um "film noir" e com uma escrita efervescente e mutante, Caio Abreu mostra-nos um certo "underground" musical, com drogas e homossexualidade à mistura com um mistério que cresce e se adensa, à medida que lemos o seu esplêndido  texto. No fim, na deriva das respostas sobram as perguntas e  fica-nos um quadro de ambiguidade moral  e filosófica, sempre com a música em fundo,que antes embalara as visões oníricas de uma realidade em fuga e agora no fim permanece a mesma, apesar de mudar o cenário... Aliás este é um livro de palavras escritas que se deixam metamorfosear  em notas musicais, logo desde o início: "Eu deveria cantar", abre o livro como um desejo e uma promessa que se materializa na última frase: "E eu comecei a cantar".
Como leitor heterossexual, por muito que os preconceitos sejam intelectualmente metidos em "camisas de forças" e agrilhoados às margens do texto, não me deixa de causar estranheza e desconforto as descrições nuas e cruas do dia a dia de homossexuais e ainda para mais no auge da grande consciência da ameaça da SIDA, que já vitimara intelectuais como Foucault e apesar da simpatia que as personagens possam suscitar, a identificação é um processo problemático ou se quisermos revela-se como na fotografia, em negativo.
Porém o  transporte de situações pessoais para a ficção, acaba por tornar o livro "outra coisa", à imagem da pureza e simplicidade procuradas por Dulce Veiga e desta forma torna a escrita mais profundamente humana, realista e apelativa e o estilo vibrante  dotado de uma  clareza e de um humor notáveis, completa o processo de aderência ao livro, tornando a leitura um acto de puro prazer. 
 

Dulce Veiga, o filme...

O tudo, o nada e o mais além...

"Onde Andará Dulce Veiga  ? "
Brasil (2008)
De Guilherme de Almeida Prado (roteiro e direção)
Com: Maitê Proença, Eriberto Leão, Carolina Dieckmann, Nuno Leal Maia, Christiane Torloni, Cacá Rosset, Oscar Magrini, Julia Lemmertz, Carmo Dalla Vechia e Maíra Chasseraux.
Fotografia de: Adrian Teijido.
Música: Hermelino Neder, Newton Carneiro e Mário Manga. Músicas originais de Tom Jobim e outros.
Drama, "film-noir", mistério, Musical. 135 minutos. Cor.
 
Sinopse:
Nos anos de 1980, um jornalista decide descobrir o paradeiro de Dulce Veiga, uma atriz e cantora que desapareceu misteriosamente nos anos 1960. O que ele não sabe é o quanto terá que descobrir sobre si mesmo antes de encontrá-la. Nesta busca, atravessa o Brasil, do Rio de Janeiro à Floresta Amazónica, e fica cada vez mais obcecado pela personalidade intrigante da filha de Dulce, uma famosa roqueira lésbica.

 
Guilherme Prado não é um cineasta qualquer. Amigo de Caio Abreu, a quem ele dedica a película, esforça-se por fazer um filme que a um só tempo, faça justiça ao génio do escritor e preserve a identidade do seu cinema.
O cinema de Prado é à imagem  do seu alter ego erudito Júlio Bressane,  um caso de problemática classificação, porque dificilmente enquadrável em qualquer dos géneros clássicos. E há quem brinque com isso, inclusive no próprio filme  e etiquete a geração de Prado, surgida em São Paulo nos anos 80, com o rótulo "néon-realismo", ou seja uma mistura de onirismo, nihilismo e realismo, moldados pelo maneirismo e pela cultura Pop e  abrangendo a descodificação das linguagens, o pós-moderno e o pós-tudo...
Os 20 anos que demoraram a encontrar a ficcionada figura de  Dulce Veiga,  parecem ter contagiado  a procura de Guilherme Prado pelo seu filme, como os 6 anos da sua génese comprovam. Guilherme Prado tem fama de perfeccionista e de não poupar tempo nos seus projectos.
Os filmes de Prado são talvez por isso, reconhecidamente complexos  mas dotados de elegância,  e marcados por um primor técnico, que não desmerece as múltiplas referências cinéfilas que neles exibe.
O filme começa com um acto de escrita numa máquina de escrever das antigas que tecla o espaço e o tempo da ação: São Paulo, 198... remetendo-nos ao mesmo tempo para o objecto fílmico: a literatura e o jornalismo.
É a preocupação de Prado em manter as referências do seu cinema e da sua autoralidade, que emerge antes de tudo.
As obsessões de Prado continuam vivas neste Onde Andará Dulce Veiga ?, com o foco dramático concitado sempre nas mulheres, apesar da condução da trama pertencer ao carismático narrador masculino.
Os seus filmes são  habitados sobretudo por personagens femininas fortes e este filme não foge à regra. Não é por acaso que figuras como Maitê Proença, Christiane Torloni e Julia Lemmertz, fazem parte do elenco, e não somente por razões simbólicas, já que  todas elas foram  "heroínas" em filmes anteriores do diretor e no caso de Lemmertz, ensaiando uma "reprise" do seu  filme anterior (A hora mágica, de 1999) na emblemática cena de abertura deste Onde andará Dulce Veiga ?.
Em jeito de "film noir", carregado de mistério, o filme está cheio de cenas de excelente recorte técnico,  nomeadamente os planos inclinados dos corredores  quando o repórter procurava Dulce  ou o "terceiro homem", uma referência mais que intencional ao filme de Carol Reed, transmitindo-nos com esse artíficio todo um senso de desorientação comum ao filme referência. E as referências ao grande cinema, não se ficam por aqui, como comprova a grande clivagem e consequente mutação  que as cenas finais na Amazónia revelam, com todo o seu realismo bucólico encerrando de vez,  os capítulos do artificialismo poluído e decadente de São Paulo, das primeiras fases do filme e que o autor julgou pertinente ilustrar ao jeito de um musical tipo Os chapéus de chuva de Cherburgo, de Jacques Demy. Emoldurada com a chuva da bela Amazónia e com a "Meditação", de Tom Jobim, em fundo...
Talvez o pecado maior deste filme seja curiosamente a demasiada atenção aos pormenores que retirou força ao conjunto, revelando-se aqui e ali, um guião algo titubeante e inconsistente. Na sua adaptação pessoal do livro de Caio Abreu, Prado retirou conscientemente uma  homossexualidade interiorizada ao repórter, tendo-o dotado de uma  maior ambiguidade, que funciona melhor com o restante da matéria fílmica. Assim se explicam as soluções mais politicamente corretas que engendrou para o filme, como a possibilidade de uma relação  entre o repórter e Márcia Felácio das vaginas dentadas ( ***** para os nomes!), coisa nem sonhada no livro. Aqueles que gostariam de ver uma Dulce Veiga - afinal o "leit-motiv" da narrativa - composta com mais densidade psicológica  e menos  de ícone pop decorativa, talvez tenham alguma razão, mas um filme também vale pelo que não mostra e apenas sugere ou deixa antever...