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sábado, 25 de maio de 2013

☑ A PAIXAO DE JOANA D'ARC, de Carl Theodor Dreyer

                                   Cinema de inspiração divina

"La passion de Jeanne D'Arc".
França (1928).
De Carl Theodor Dreyer, com Maria Falconetti, Eugene Silvain, André Berley.
Drama.História. Biografia.
82 minutos (DVD Criterium). Preto e branco. Mudo.
Sinopse: Uma crónica do julgamento de Joana D'Arc, acusada de heresia, onde assistimos às pressões das autoridades eclesiásticas, para forçar Joana a retratar-se das suas supostas visões divinas.

  
Um filme feito há 85 anos, que sobreviveu inteiro à erosão do tempo, em todas as dimensões que se considere, conquistando o estatuto de obra intemporal. Rodado em França em 1927, foi logo vítima de censura, no ano do seu lançamento (1928). O negativo original e um segundo negativo reeditado por Dreyer, foram queimados pelo fogo. Durante mais de meio século, apenas estiveram disponíveis cópias truncadas ou uma versão sonorizada que faziam grandes alterações a este clássico do cinema mudo.
Em 1981, foi encontrada miraculosamente  uma cópia Dinamarquesa original, completa e em bom estado  de conservação numa arrecadação de uma instituição de saúde mental da Noruega (!).
No original fazia parte um trecho de musica live e no restauro de 1981 é introduzida "Voices of Light" escrita por Richard Einhorn, com músicas e textos medievais inspiradas nos eventos históricos e no próprio filme.
Um  filme único  com um visão portentosa sobre a diferença e a intolerância  muitas vezes associadas da forma mais cruel.
Dreyer, presenteia-nos com uma obra fulgurante, plena dos sentimentos mais sublimes a par dos mais mesquinhos instintos e actos, de que é capaz a espécie humana, através de close-ups mesmerizantes de uma Falconetti divinamente transfigurada.
Uma profunda e sensível aventura espiritual, que ultrapassa a dimensão meramente religiosa e transporta a mente e o coração para horizontes raramente alcançados pelo cinema. 
 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

☑ A MULHER SEM CABEÇA, de Lucrecia Martel

               Quando não sabemos o que deixamos para trás
                                                             
"La mujer sin cabeza"
Argentina (2008). 
De Lucrecia Martel, com Maria Onetto, Claudia Cantero e César Bórdon. 
Drama.Mistério.Thriller psicológico.87 minutos.
Sinopse:Verónica, uma mulher de meia idade, conduzia o seu carro, num entardecer chuvoso numa estrada deserta , quando sentiu embater em algo. Após momentos de perturbação e indecisão, resolveu seguir o seu caminho, mas a partir de então ficou obcecada com o acontecimento, convencida de ter matado alguém.

Terceira longa de Lucrecia Martel, este filme foi muito mal recebido pela crítica e público do festival de Cannes em 2008, acusado de ser incompreensível. 
De facto, o trabalho anterior da realizadora Argentina já permitira traçar dela um perfil de autora cerebral  que desafiava as convenções vigentes. À superfície, o título do filme, pela sua ambiguidade, convida-nos a uma atitude eminentemente cerebral, de decifrar um mistério, tanto no sentido imediato das palavras quanto no seu alcance figurativo. 
No início do filme, Verô a personagem principal, é nos apresentada por uma característica física aparentemente trivial, o seu gabado cabelo pintado de louro. Em seguida, ao conduzir o seu carro, embate em algo que não identifica - um animal ? uma pessoa ? - e após momentos de angústia e indecisão, resolve abandonar  o local, sem sair do carro, não esclarecendo se de facto atingiu ou não uma pessoa (pareceu-lhe que sim), atitude esta, pelo menos, moralmente questionável. Estes acontecimentos desencadeiam um estado confusional na protagonista, que se torna incapaz de confiar na percepção do (seu) real e nós que vemos o filme (ficção) um pouco pelos  olhos e mente desta "mulher sem cabeça", ficamos perdidos, a precisar de um mapa. Poderemos ter a certeza do que vemos no nosso filme, guiados pela cabeça ausente desta mulher ? No limite, até poderemos duvidar, se o acidente aconteceu mesmo no mundo "real" da protagonista ou se esta o concebeu de forma onírica, num esquema muito à David Lynch, o que para nós espectadores, corresponderia a entrarmos num túnel dentro de um túnel ou de uma ficção no interior da ficção. E esta hipótese, é sugerida de mansinho, com o sono atribulado e culpado de Verô, no quarto de Hotel depois de  uma cena adúltera com um familiar. E mais ainda, perto do final, quando desaparecem misteriosamente as provas destes acontecimentos, deixando tudo em aberto. 
Surge destas premissas inquietantes o desafio de reconstituir o enredo, através de um plano B, agora deliberadamente fora da perspectiva de Verô e estudando a interação da protagonista com as  personagens significativas da sua envolvência. Todas as pistas que nos são fornecidas apontam para um efeito "gota de água", algo de insidioso que se foi sedimentando em Verô, até implodir na forma de um choque emocional clássico, com problemas de percepção e sinais de desfasamento da realidade. 
Falar de amnésia é impróprio, como parece forçado fazer uma leitura psicanalítica e política desta situação, como se o filme fosse uma metáfora à ditadura militar dos anos 70, com os seus desaparecimentos e assassínios, embora se insinue uma colagem dos acontecimentos a essa época, nomeadamente através da banda sonora do filme. Nós não iremos tão longe, embora o peso político, à luz dos contrastes sociais subtilmente expostos no filme, seja uma evidência. 
E a culpa? será que não é importante a culpa ? Se este filme,  não fosse também sobre uma culpa, ainda que indefinida no seu objecto, não teria importância a obsessão da protagonista com "aquilo" que ficou na imagem do espelho retrovisor e esse facto não teria repercussão nas outras personagens, o que decididamente não é o caso. Mas a expressão desta suposta culpa será talvez, uma válvula de escape de algo mais profundo que se esconde na vacuidade aparente do mundo mental da protagonista.
Os elementos telúricos, sobretudo a água, são omnipresentes na narrativa e o seu simbolismo não deve ser menosprezado. Assim, depois da tormenta, que "turvou" tudo, incluindo  o que se vislumbra pelos vidros embaciados dos carros e o aspeto da água das torneiras - "Espere até clarear", diz a Verô, a certa altura, o empregado do Hotel - e depois de muita água ter passado debaixo das pontes, a protagonista pinta o cabelo de preto - de novo a água, que muda (quase) tudo - a mulher parece agora ter recuperado a cabeça sobre os ombros e nós o fio à meada. Será assim?
A resposta a esta pergunta está no final, quando somos convidados a visualizar o regresso a uma aparente normalidade através de uma barreira desfocada de vidro.
Em suma, estamos perante um filme que coloca questões pertinentes sobre a percepção e a memória dos acontecimentos e o modo como lidamos com as dúvidas permanentemente suscitadas pelas leituras das imagens que persistem desfocadas no nosso espelho retrovisor mental.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

☑ O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho

                                  Ecos ao redor de um bom filme


" O som ao redor"
Brasil (2012).
De Kleber Mendonça Filho, com Gustavo Jahn, Irma Brown, Maeve Jinkings. 
Drama / Thriller. 131 minutos.
Sinopse: Várias histórias que se cruzam na vida de um bairro de classe média do Recife, cujo quotidiano   é alterado pela chegada de uma empresa de segurança privada.



Primeira longa metragem do antigo crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, este filme surpreende pela positiva em vários aspetos. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao género, o filme começa  por insinuar-se no domínio da análise social  e sem abdicar deste olhar, acaba  pouco a pouco por   assumir uma vertente menos comprometida e mais lúdica, travestindo-se no final num autêntico thriller. 
Um bairro de classe média do Recife, é de certa forma a personagem principal do filme, um corpo vivo de betão cujo quotidiano emana um nervosismo repleto de sons ao redor, que ecoam e reverberam de forma exacerbada, sinal de tensão latente, ameaça e premonição de violência.
Neste domínio merece aplauso a excelente ideia do argumento e a sua bem sucedida implementação técnica. 
As personagens são condicionadas por essa envolvência sonora, como no caso da mulher que tenta eliminar o cão barulhento do vizinho,  que é curiosamente, a mesma que aproveita o efeito ruidoso e vibratório da máquina de lavar, para fins lúdicos e lúbricos. É uma comunidade em permanente estado de alerta, que se fecha atrás das grades de ferro e contrata segurança privada, prevenindo-se contra uma ameaça potencial mas indefinida,  numa espiral de isolamento e tensão. É como se uma bomba estivesse prestes a explodir  e na babel de sons ao redor se ouvisse o ruído de um rastilho aceso.  Aliás, esta ideia de perigo iminente percorre e infecta a narrativa e  materializa-se de forma lógica no exemplar final.
Um filme sobre as contradições de uma sociedade, que curiosamente se agrega ao redor de uma ideia de isolamento, desconfiança e intolerância.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

☑ DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, de Robert Bresson

                                 Primeira página do diário

"Journal d'un curé de campagne"
França (1951).
De Robert Bresson, com Claude Laydu, Jean Riveyre e Adrien Bore.
Adaptado do romance de Georges Bernanos  com o mesmo nome, de 1938. 
Drama.115 minutos.Preto e branco. 
Sinopse: Um jovem padre debilitado é encarrege da sua primeira paróquia e os habitantes não lhe facilitam a vida, apesar da sua grande dedicação.

A apreciação que se segue diz respeito à minha primeira visualização do filme, já que a pontuação tem tendência a subir e a atingir patamares racionalmente aceitáveis lá pela quarta observação, altura em que se estima abarcar uns razoáveis 60% das subtilezas filosóficas e pérolas cinemáticas que encerra, avisam os especialistas. Este filme com 60 e tal anos de estágio na pipa - e isto não deve ser entendido como uma piada ao padre apreciador da terapeutica alcoólica - é um exemplo acabado, de como as grelhas de avaliação de um filme, não devem ser universais. Pelo prisma, com que se avalia por exemplo, um filme como "efeitos secundários", este filme de culto de Bresson seria arrasado, sem dó nem piedade. Porquê ? Porque é lento, depressivo e com uma intriga que dando de barato que existe, só é possivel reconstituir como sobrenadante da dinâmica psicológica das personagens, já que Bresson é sobretudo um exímio retratista de carácteres, não lhe interessando o "como" mas sim o "porquê" das situações que vai desfiando na tela, sem excessiva representação, daí preferir actores e actrizes semi-profissionais ou amadores, que espelhem perfis mais naturais ou espontâneos.
É um filme com um "mood" monótono e depressivo, sobre a solidão, a doença e a incompreensão que aqui e ali manifesta propriedades suporíferas indiscutíveis e consciente deste facto, há até uma crítica na web, em tons laudatórios, mas realmente preocupada com a indução do sono nos cinéfilos impreparados, que tem uma receita para evitar o efeito hipnótico, aconselhando a fixarmo-nos nos sons e no que acontece fora do plano e outras extravagâncias que fazem zero de sentido para o espectador comum de cinema.
Releva-se pela positiva a perspicácia deste estudo humano de uma comunidade provinciana da França da primeira metade do século 20, ainda que apenas vista pelos olhos sofredores e pela escrita sensível do padre, sendo interessante questionar a ausência do ponto de vista dos paroquianos, que decerto teriam muito a dizer.
A cinematografia de Bresson é um tratado de perfeccionismo, com a sua obsessão pelos ínfimos pormenores enquanto que o soft-focus confere o toque impressionista que percorre as belas imagens a preto e branco,

domingo, 12 de maio de 2013

☑ O SUL, de Victor Erice

                              Pai e filha: o pêndulo da inocência

"El Sur"
Espanha  (1983).
De Victor Erice, com Omero Antonutti, Sonsoles Arangurren, Icíar Bollaín, Lola Cardona e Rafael Aparício.
Argumento de Victor Erice, adaptado do livro de Adelaida García Morales "El Sur " (1983)
Drama. 95 minutos. 


Projecto inacabado, como Victor Erice comprovou numa entrevista, este filme é no entanto, uma jóia  de subtileza e rara dimensão poética, da relação entre um pai e uma filha. Rodado no dealbar da Espanha democrática, mas reportando-se ao período do pós-guerra civil, esta obra confirma a mestria de Erice na composição de universos humanos complexos. Através da voz-off da narradora adulta, o filme, revela-nos de uma forma melancólica as suas memórias familiares, em especial a sua relação com o pai. O pai, apesar de médico, experimenta as dificuldades do difícil período do pós-guerra civil e tem de deslocar-se frequentemente, acabando por radicar-se numa pequena cidade de Navarra. A narradora aborda a sua  infância marcada pela imagem misteriosa e quase mágica do seu pai, visão que se vai alterando, à medida que reflecte sobre o seu obscuro passado no sul, e mais ainda quando julga lhe ter descoberto uma suposta relação secreta
O sul é o imaginário onde se encontra escondido o passado da sua família e onde se insinua o futuro da protagonista.
Um retrato lírico sobre a perda de inocência e os nossos ídolos caídos, este filme vem até nós, lentamente, imprimindo as suas sublimes imagens e ecoando os seus silêncios e sons no sítio do cérebro onde guardamos as mais gratificantes sensações. 

☑ EFEITOS SECUNDÁRIOS, de Steven Soderbergh

                               Efeito placebo

"Side Effects"
EUA (2013).
De Steven Soderbergh, com Jude Law, Rooney Mara, Catherine Zeta-Jones e Channing Tatum
Drama / Thriller.106 minutos. 

 
Emily Hawkins (Rooney Mara) é uma jovem com distúrbios psicológicos, tomando antidepressivos, que após uma tentativa de suicídio, passa a ser acompanhada pelo Dr. Jonathan Banks (Jude Law). O seu background social - o marido esteve preso - parece explicar em parte o seu estado psicológico, mas nem mesmo a libertação do marido e as terapeuticas com sucessivas drogas anti-depressivas, parecem alterar significativamente o seu estado. O filme arranca da melhor maneira, embrenhando-se no mundo dos ensaios clínicos e da cumplicidade entre médicos e indústria farmaceutica.
E quando parecia que o filme ia se centrar na gigantesca máquina de propaganda dos medicamentos e na instrumentalização e impersonalização do tratamento dos distúrbios psicológicos, eis que Soderbergh, puxa dos galões de cineasta do "mainstream" e flip após flip, manipulação após manipulação, conduz-nos a um produto híbrido, um cocktail farmacológico com alguns efeitos secundários imprevisíveis, mas dificeis de engolir e no fundo o princípio activo resumindo-se a um placebo.
Para entreter, sem grandes alardes, nesta despedida (?) sem glória, de Steven Soderbergh, do mundo da realização.

☑ O PROFUNDO MAR AZUL, de Terence Davies

                          Sem sombra de pecado

"The deep blue sea" 
UK / EUA (2011).
De Terence Davies, com Rachel Weisz, Tom Hiddleston, Simon Russell Beale e Ann Mitchell.
Drama / Romance.98 minutos.



O filme adapta a conceituada peça de teatro homónima de Terence Rattigan, de 1952, que de resto esteve na origem de outras adaptações, na área de TV e do cinema, citando-se nesta última área, o filme  de 1955  de Anatole Litvak. Embora se ressalvem as especificidades das linguagens teatral e cinematográfica e se percebam os problemas inerentes à escrita de um argumento e à implementação de um projecto de cinema, baseados nesta premissa, o que é certo é que esta é uma frouxa "história de amor e de luxúria", parafraseando a descrição que emoldurava a peça de Rattigan.Trata-se de um filme de época, no cenário Londrino do pós-guerra, que descreve a relação adúltera de Hester Collyer (Rachel Weisz), a mulher de um prestigiado Juíz (Simon Russel Bealle) com um ex piloto da RAF (Tom Hiddleston). Mesmo considerando o contexto histórico e social, é difícil de descortinar neste filme um clima de amor e luria, que leve à tentativa de suicídio da protagonista. Este filme arrasta-se num tom nostálgico e monocórdico e é servido em doses excessivas de um academismo diletante,  que apenas  empobrece a experiência fílmica. Nem a expectacular performance de Rachel Weisz, salva este filme de um obtuso e pretensioso equívoco cinematográfico.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

☑ DANS LA MAISON (2012), de François Ozon

Palavras escritas na casa do cinema

França (2012).
De François Ozon, com Fabrice Luchini, Ernst Umhauer, Kristin Scott Thomas e Emmanuelle Seigner
Mistério, Thriller. 105 minutos.


Adaptação cinematográfica da peça de 2006, do dramaturgo  espanhol Juan Mayorga, "El chico de la última fila", este filme de Ozon soube conquistar de forma elegante as  singularidades narrativas, que justificam uma análise autónoma, sendo no entanto curial, enquadrar a sua filiação teatral, em algumas vertentes analíticas ligadas não só à estrutura do argumento, como também à própria "mise-en-scène". E para além disso, é pertinente não esquecer a peça de Juan Mayorga quando se elogiar a criatividade do argumento !
Claude Garcia, de 16 anos, aluno do liceu, insinua-se no círculo familiar de um dos seus colegas de turma e escreve redações das suas experiências de observação e análise da família em causa, exercício estimulado e modelado pelo seu professor de Francês, Germain, um escritor frustrado.
"Dans la maison" (dentro de casa) não se resume à demonstração de uma  privacidade violada e manipulada e muito menos ao alimentar  gratuito de um instinto voyeur, que o cinema adulto, sabe contextualizar e disfarçar  nas subtilezas e nas entrelinhas  da sua própria linguagem. Ozon, vai mais além, propondo a desconstrução da própria ideia da narrativa, que neste filme, é sedimentada  em camadas  - o desenvolvimento de um projecto literário dentro do filme, o aluno e o mestre, "a casa" e o resto - e alicerçada na relação simbiótica entre a linguagem literária e o cinema, numa dinâmica de leituras cruzadas, como se  estivéssemos perante um complexo jogo metalinguístico bi-direccional.
O argumento entra em tom declaradamente irónico na  comédia de costumes, com alvo preferencial na classe média e pelo seu ritmo particular, cedo é embebido de elementos de insinuação, ambiguidade e mistério, no que à superfície, se admitiria uma réplica do cinema de  Hitchcock, mas a ausência do elemento revelação, afasta-o consciente e decisivamente de uma estética "Hitchcockiana".
Um complexo quadro psicológico e social, tendo como pano de fundo, o eternamente inacabado diálogo entre a literatura e o cinema.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

☑ GET LOW - A LENDA DE FELIX BUSH (2009), de Aaron Schneider

                                         Promessas não cumpridas


EUA (2009).
De Aaron Schneider, com Robert Duvall, Sissy Spacek e Bill Murray
Drama.103minutos. 



Inspirado numa história real ocorrida no Tennessee em 1930s. 
Felix Bush (Robert Duvall), é um velho que vive isolado desde há quase quatro décadas, na sua cabana num bosque da periferia de uma cidadezinha do Tennessee. Trata-se de um homem  cujo comportamento anti-social, de que faz alarde num letreiro à entrada da sua propriedade ("Não entrar, cuidado com a caçadeira !"), fez dele uma autêntica lenda,  multiplicando-se na tradição oral da região, as histórias de violência que protagonizou. Um dia, após ter sabido da morte de um outro eremita da região, surpreendeu toda a gente, ao pretender organizar uma festa do seu próprio funeral, a que ele assistiria ainda vivo. Seriam convidadas, todas as pessoas, que tivessem algo a dizer sobre Felix e haveria um sorteio, cujo vencedor herdaria a  sua propriedade após a sua (real) morte. Para organizar o evento, contratou o agente funerário Frank Quinn (Bill Murray).
Este comportamento de Felix Bush, está relacionado com o peso de um passado obscuro que começa a desvendar-se quando surge na localidade, Mattie Derrow (Sissy Spacek), uma viúva, com quem admitiu ter tido um caso.
Primeira longa-metragem, do americano Aaron Schneider, que anteriormente apenas tinha sido autor de uma curta e que era conhecido pela direção de fotografia, sobretudo em séries de TV.
As premissas do argumento eram prometedoras, sobretudo no potencial  das histórias lendárias sobre o mau feitio do protagonista e no chamariz pouco usual de um funeral realizado...em vida ! No entanto, as histórias da relação atribulada de Felix com os membros da comunidade, que se afiguravam interessantes foram reduzidas ao mínimo e a ideia da encenação do funeral em vida, não resultou como se esperava, porque em grande parte foi subalternizada ou condicionada pela revelação do segredo do protagonista que se revelou pouco consistente, resvalando para o dramalhão, apesar do esforço de Robert Duvall.
Um filme sobre a culpa e a procura da redenção, que em grande parte, se fica pelas intenções, salvando-se as grandes interpretações de Robert Duvall, Sissy Spacek e Bill Murray e um registo de época e cinematografia sóbrias e coerentes.

domingo, 5 de maio de 2013

☑ VIRIDIANA (1961), de Luis Bunuel

Perdoai-lhes senhor, porque não sabem o que dizem
***




Apresentação

Palma de Ouro em Cannes (1961).
Considerada uma obra prima, pela generalidade da crítica. 
A associação de críticos  de Espanha, considera-o o melhor filme espanhol de sempre.
Com Silvia Pinal, Francisco Rabal e Fernando Rey.
1961. 90 minutos. Preto e branco.


Crítica
Este filme funciona do meu ponto de vista pessoal, como um
"case study", porque livremente me excluo do exército de crentes que o venera.
Antes de mais nada, devo dizer que acho incontornável e aprecio moderadamente o cinema de Luis Bunuel, desde os anos 70, quando vi pela primeira vez, "A Via Láctea". E digo "moderadamente", porque apesar de aplaudir o seu espírito livre e subversivo e a sua vasta cultura e imaginação febril, que se expressam em histórias singulares de uma memória viva e embebidas de uma perspicácia e de um humor corrosivo, características que no seu conjunto, são dificeis de inventariar nos realizadores da sua geração, no entanto não partilho a sua visão do mundo.
Devo dizer, antes de novas considerações, que em termos religiosos, me defino como não crente e não acho que, para esta questão tão pessoal e íntima, me deva servir de qualquer cartilha dos inúmeros bandos de incréus que pululam por este mundo, desde o iluminismo e que inchados de uma vaidade incomensurável, se acham investidos de uma missão quase divina, de por um lado, catequizar os não crentes e por outro, ainda de forma mais patética, arrepanhar para o seu infalível e maravilhoso ideário, os infelizes crentes que professam de forma para eles errónea, qualquer religião.Proselitismo que ultrapassa em muito o das religiões que apoucam ! Claro, que se desculpam desta gritante falta de humildade, com um amor acrisolado àquilo que eles chamam de razão e verdade. E quando estes argumentos, não chegam para emocionar a turba, esses próceres filhos das luzes, deitam mão de tudo o que lhes servir para descredibilizar as opiniões contrárias e é vê-los aí nos IMDB e blogs de crítica a espumar e a esporrar contra a pedofilia e os escandalos do Banco Vaticano e afins, lado a lado com o arrazoado pseudo-racional da ordem.
Que é que isto tem a ver com cinema e em especial com o filme de Bunuel, perguntar-me-ão.
Tem e não tem…
Tem, porque basta fazer uma consulta das críticas deste filme ao IMDB e blogs de crítica, para ver que está lá tudo o que foi dito. Um "crítico" da Índia, diz que este filme é sobre uma experiência religiosa errónea, deduzindo-se  que considera errados os impulsos de caridade cristã e certa a postura da religião da terra dele, face à extrema injustiça e obscena pobreza do seu país.
Um crítico num blog, eructa a seguinte pérola: " Na memória fica a altivez moral da noviça Viridiana (Pinal), que se recusa a dedicar uma mínima dose de calor humano ao tio (Fernando Rey). Após a morte dele, decide acolher mendigos, prostitutas, leprosos e vagabundos das ruas, arrebanhando-os para morar consigo, na esperança de fazê-los trabalhar, de “corrigí-los”. Perspicaz, Buñuel escancara a hipocrisia autocomiserativa, a falsa culpa – em vez de solidariedade – de onde nasce o ímpeto de caridade de idealistas ingênuos". 
Confesso que fiquei baralhado… li e reli, o texto para verificar, de facto, se a altivez moral se referia à única personagem humana e decente do filme…
Quanto ao calor humano que ela recusou ao tio, apenas foi um sábio sexto sentido que a norteou, como se pôde ver claramente no filme. O impulso de retirar da rua e dar valor àquele bando de infelizes, poderá até configurar um acto de ingénuo idealismo, mas "hipocrisia autocomiserativa" ?! - em vez da solidariedade, realça-se - Então, o que é essa porra de solidariedade ?! É dizer-lhes: "têm toda a minha solidariedade, mas nós não fazemos hipocrisia autocomiserativa, se quiserem comer, esperem que as condições sociais sejam mudadas por nós, OK ?!"
Bunuel, de facto questiona os fundamentos da moral e da caridade cristã e admite-se que os rejeite, porque na sua perspectiva, a natureza humana e os instintos básicos que lhe subjazem, opõem-se-lhe de forma insolúvel. E este pessimismo no filme é tão chocante, que não há sequer um mendigo que escape a esse anátema de Bunuel ! Bem confessou Bunuel o seu ódio à estatística mas ninguém lhe ligou : 100% de mendigos crápulas !  
A cena do cão libertado também é paradigmática. Por um cão libertado à ignomínia, um outro infeliz é imediatamente visualizado. Qual é o ponto ? Que é escusado salvar um cão, porque há milhares em idênticas condições? Bom, fiquemos por aqui…
Para mim os fundamentos defendidos por Bunuel, só são parcialmente válidos. E não vou pelo conceito da "Graça" defendido pelo catolicismo, vou mais pelos enunciados da razão, que quando convém, parece que são deitados ao lixo. É evidente que em grande parte o filme não passa de uma caricatura e sabe-se bem o que Bunuel quis fazer com isso: questionar os princípios da organização social e os fundamentos da moral cristã. 
Que o que sucedeu com Viridiana, estilhaçou grande parte do seu suporte da fé, isso é um facto evidente na sequência final do filme. Agora daí extrair outras consequências, incluindo a delirante "menage a trois", que muitos conseguem visualizar no final , isso só se fôr numa putativa sequela do filme ou na puta das suas escabrosas cabeças…
Que Bunuel se divirta com a iconoclastia da última ceia e que isso divirta o pagode - até eu me diverti - tem todo o direito e só vê quem quer. O que se critica aqui é a excessiva altivez e a superioridade moral, dos sem moral, que emergem triunfalmente da cena.
Quando Bunuel referiu, já no fim da sua vida, que se pudesse destruía todas as cópias de todos os seus filmes, isso foi interpretado como um exagero à escala surrealista do autor. Ninguém deu de barato, o ar de auto-crítica, que  poderá estar implícito nessa frase, negando-se a um homem genial a humildade e a possibilidade de rever a sua vida, como foi concedida e muito aplaudida a Viridiana.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

☑ O ESPÍRITO DA COLMEIA, de Victor Erice

Com os olhos e o coração à descoberta do espírito do cinema
*****

FICHA
Titulo em português: O espírito da colmeia
Título original em espanhol: El espíritu de la colmena
Ano: 1973
Origem: Espanha
Género: Drama, fantasia, política
Cinematografia: Luis Cuadrado
Argumento: Victor Erice, com colaborações de Ángel Fernández Santos e Francisco J. Querejeta
Realização: Victor Erice
Interpretações: Fernando Fernán Gómez, Teresa Gimpera, Ana Torrent e Isabel Tellería.

SINOPSE
Espanha, 1940. Um dia, o cinema ambulante chega a uma aldeia do planalto castelhano e é exibido o filme "Frankenstein" (1931), de James Whale. O filme impressiona sobremaneira  duas meninas, as  irmãs Isabel e Ana, sobretudo esta última, que obcecada pelo monstro do filme, inicia-se na descoberta dos mistérios do mundo.

CLIP



CRÍTICA
No princípio anuncia-se o cinema, em movimento, na planície parada e desolada.
O filme inicia-se com a proposta de um outro filme, que irrompendo dentro do nosso filme, com ele se plasma numa singular  e virulenta obra de arte, que nos arregala o nosso olhar infantil. Indiferente da nossa idade, nós estamos na primeira fila do cinema e são nossos aqueles olhares pueris que se espantam com os mistérios da criação, da morte, do bem e do mal.
Entretanto, não muito longe da sala de cinema o velho estudioso de apicultura, contempla mais uma vez perplexo, o mundo misterioso da colmeia. E também ao mesmo tempo, Teresa a mulher do apicultor,  numa viagem solitária de bicicleta, leva uma misteriosa carta ao comboio.
Apresenta-se desta forma o prodigioso filme de Victor Erice, obra multifacetada, com vários nucleos narrativos, correndo paralelamente e convergindo numa história de solidão, diferença e alienação, vista por vários ângulos mas privilegiando o olhar infantil.
Embora a simples contemplação deste filme, de delicadas matizes  emocionais, seja por si só suficiente para nos embeber numa riquissima experiência de puro cinema, há elementos do contexto socio-cultural e político, que poderão proporcionar ilações adicionais deste filme.
Deve ser referido que este é um filme rodado em 1973,  nos últimos anos  do Franquismo e não é indiferente ao contexto político, suscitando múltiplas leituras, que advêem igualmente do período histórico a que se reporta.
A narrativa ocorre na meseta catelhana, em 1940, um ano depois do fim do terrível flagelo da guerra civil espanhola e também no início da longa ditadura de Franco. Esse é também o ano do nascimento do realizador Victor Erice.

O argumento comporta várias linhas narrativas, que parecem realmente estanques uma vez que a solidão e a alienação são elementos  do enredo que propiciam tal estrutura. A principal, é a história de Ana e Isabel, as duas crianças de 6 e 8 anos, cujas vidas vão ser alteradas pela visão do filme Frankenstein de James Whale (1931), embora de forma diferenciada, díriamos até oposta. Isabel desvaloriza a importância da história relatada e quando questionada pela irmã acerca das razões que levaram o monstro a matar a menina e posteriormente a ser morto, responde que nada no cinema é verdadeiro, tudo se resumindo a truques e que o monstro existe como espírito, basta fechar os olhos e invocá-lo que ele aparece.Todo o seu comportamento posterior, culminando na sequência em que encena a sua morte - pelo monstro, presume-se - atesta essa visão das coisas, ao mesmo tempo que se revela insensivel e cruel em relação à irmã. Por outro lado Ana, confunde realidade e fantasia e empenha-se em encontrar realmente o monstro,e nessa altura a câmara e o olhar de Ana tornam-se indissociáveis. E repleta de inocência Ana, inicia a sua viagem solitária do conhecimento à escala infantil.

"- Ana o que está faltando a Don José ?
- Os olhos.
- Os olhos. Muito bem. Então coloque-os" 
Em linhas narrativas mais sumárias mas não menos importantes, fluem as histórias  do casal disfuncional de progenitores, ele alimentando a vertente intelectual  da história, com o seu universo de meditação e escrita centrada na vida das abelhas, ela representando a corrente mais emocional, cristalizada no amor perdido.
Estamos perante um filme singular, de contornos alegóricos, onde se respira uma atmosfera onírica, com ressonâncias filosóficas imediatas e simples e onde é dado ao espectador um papel importante, não meramente passivo, cabendo-lhe também a meritória tarefa de ajudar a tecer de forma coerente as delicadas texturas deste filme. 
Cenas marcantes são quase todas, desde a divertida aula de anatomia com Don José, que é apesar do seu carácter caricato, uma das muitas chaves interpretativas do filme, até aos "encontros" reais e "oníricos" de Ana com o monstro e incluindo a bela sequência final.
Quanto às conotações políticas e possiveis metáforas associadas às figuras do monstro (Franco), Ana e Isabel (Espanha, facções da guerra civil), casa/colmeia (Espanha), elas são legítimas, dependendo do gosto e da imaginação de quem as concebe.
Mas é inegável que o filme tem uma  necessária carga política, que lhe advem da oposição expressa entre o carácter gregário das abelhas e a solidão manifestada dos seus personagens. 
Este é um filme de imagens sublimes, facultadas por uma fotografia  em tons de mel,  por Luis Cuadrado, quase cego na altura da rodagem do filme (viria a suicidar-se anos mais tarde).
E  claro   não   podia   deixar   de   se   fazer   referência   à   interpretação milagrosa de Ana Torrent, como Ana.
Às belíssimas imagens, que nos deixam sem palavras para descrevê-las, juntam-se outras palavras significativas, estas ditas em partes pertinentes da narrativa pelos seus personagens, como o poema de Rosalía de Castro, lida na escola por uma criança:

Nem mesmo o rancor ou desprezo,
nem mesmo o temor de mudar.
Apenas sinto sede,
uma sede do que eu não sei que me mata.
Rios de vida, onde foram?
Ar, o ar que me falta. 
O que vês na escuridão que o faz tremer silenciosamente?
Não vejo. Vejo como um homem cego...
quando encara diretamente o sol.
Devo cair então onde os que caem nunca se levantam."
Rosalía de Castro, Poema XIII ( de Follas novas)
 
Ou da escrita obstinada de Don Fernando: 
Alguém a quem havia recentemente mostrado minha colméia de cristal,  
com o movimento de sua roda tão visível como o da roda principal de um relógio  
Alguém que via as constantes agitações dos favos de mel,
a agitação perpétua, enigmática e louca...  
das abelhas obreiras sobre os ninhos,  
as pontes e escadas que formam os alvéolos de cera,
as espirais invasoras da rainha,  
a atividade variada e incessante da multidão,  
o esforço desperdiçado e inútil,  
as idas e vindas como uma dor febril,  
a insônia sempre ignorada,  
que anuncia o trabalho da próxima manhã,  
o repouso final da morte,  
longe de uma residência que não admite enfermos nem tumbas.
Alguém que observou estas coisas,  
depois de passado o assombro inicial,
rapidamente afastou os olhos...
onde se via indescritível espanto. " 

Ou do que a páginas tantas, se ouvia do rádio de Don Fernando:
“Diga-me, você nunca ficou curioso?
Para aquilo que se esconde por trás do limite do conhecimento?
Você nunca desejou ver além das nuvens e das estrelas?
Ou saber o que faz as árvores crescerem e as sombras se iluminarem?
Se você falar isso vão te chamar de insano”.

É este mistério experimentado po Ana, na cena final, quando ela abre a janela decorada com favos de mel, desenhados na penumbra da noite e murmura:
"Se você é sua amiga,
você pode falar com ele quando quiser.
Apenas feche os olhos... e o chame.
Sou Ana." "Sou Ana."
O monstro não aparece. A janela fecha-se e Ana vira-lhe as costas e encara-nos. 
O filme acaba assim.Sublime...