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domingo, 27 de outubro de 2013

☑ Revisitando a PORNOPOPÉIA de Reinaldo Moraes

Zeca e o cinema
FICHA
Título: Pornopopéia
Autor: Reinaldo Moraes
Editora: Quetzal Editores
Data de lançamento: Junho de 2001
Nº de páginas: 264

FNAC
SINOPSE
"O protagonista de Pornopopéia, é um produto do nosso tempo - um individualista atroz na busca incessante do prazer imediato.
Antigo cineasta marginal (com uma única longa-metragem no currículo), Zeca, que não tem dinheiro e vive na base do improviso, precisa de fazer um spot publicitário sobre miúdos de frango. E não sabe por onde há-de começar. Por isso dá largas à sua voracidade (mais uma linha, mais um uísque, mais um engate) e entra numa espiral de sexo, álcool e drogas de proporções épicas." (FNAC)


Um livro muito especial, já revisto neste blog, pelo nosso oráculo de serviço (link) que lhe augurou um lugar de relevo no nosso córtex temporal e límbico e na história da literatura.
Não vamos aqui fazer qualquer recensão, para além do "muito especial", que lhe dedicamos.
Quem desejar análises literárias e até filosóficas, terá matéria de sobra com que se entreter.
Eu recomendo, na ocidental praia lusitana, a magnífica entrevista de Alexandra Lucas Coelho a Reinaldo Moraes ("Reinaldo Moraes: tesão ou morte"), no seu blog do "Público"  (link) e a recensão de João Bonifácio ( "Sobredose de Testosterona"), no mesmo jornal.(link)
No lado de lá do Atlântico, eu sugiro em primeiro lugar a crítica de Nelson Motta, no Globo blog ("O fino da grossura") (link) e depois a recensão da Folha de S. Paulo, por Alcir Pécora ("Moraes "viaja" em romance sexo, drogas e literatura") (link) e a do Canto Dos Livros, por Rodrigo Casarin ("Pornopopéia - sexo, drogas e um personagem épico") (link).
Interessante, é também avaliar outras vertentes não estritamente literárias que o livro de Moraes suscita. A este respeito, acho que merece uma leitura, a análise da moral de Zeca, na pena de Leo Furtado no Ditirambo ("Pornopopéia e a Moral da Vontade") (link).
No meu caso, interessa-me aqui divagar sobre um tema que eu e o Zeca apreciamos sobremaneira: o cinema.
Vamos então discorrer sobre o cinema em Pornopopéia, mais exatamente "Zeca e o Cinema".

Para começar, Zeca é um cineasta com um currículo reconhecido, do qual faz parte um prémio no Festival de cinema de Cartagena, pelo seu filme "Holisticofrenia". Este filme valeu-lhe um prémio e o rótulo de cineasta "maldito" ou "marginal", que vai carregar como uma cruz para o resto da vida.

"Fazemos até filmes malditos, e aí está o meu Holisticofrenia, um clássico na cinematografia marginal, pra atestar isso."

"E quando saíram, caso único do Holisticofrenia, foi só pra me valer o carimbo de “cineasta maldito”, tão vantajoso no mercado de audiovisual quanto um furo na testa. Nem mesmo o prêmio no festival de Cartagena ajudou a levanter minha bola. Sou, sempre fui totalmente por fora das panelinhas de cinema. Cheguei a viajar um pouco pelo Brasil a convite de cineclubes e grêmios universitários pra exibir o Holi, comi umas doidinhas em hotéis 3 estrelas de lugares como Passo Fundo, Bauru e João Pessoa, conheci uma pá de psicopatas com abiloladas tendências artísticas, e mais nada."

Esse epíteto  pode até impressionar, mas não gera a necessária grana e por isso para sobreviver, Zeca teve que fazer cinema porno e por fim, spots publicitários.

"O pessoal de cinema tem que rebolar pra viver".

"Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopeia, não é arte. É — repita comigo — vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor."

"Você devia ter chamado um bosta dum roteirista qualquer pra te ajudar, desses que filam cigarro e cerveja de mesa em mesa na Merça e não perdem chance de puxar uma lousa e dar aula sobre Hal Hartley e a narrativa cinematográfica interior aos substratos descontínuos da consciência dos personagens pra alguma gostosinha basbaque de peitinhos soltos dentro de uma camiseta de pano fino."

"(Porra, tu é uma anta mesmo. Em vez de cavar um lugarzinho numa agência quando teve a chance, foi se meter com cinema, e marginal inda por cima. Acabou no pornô e nessa bosta mole de vídeo institucional, o gonococus aureus da porra do cavalo land rover do publicitário. Agora foda-se, mermão. Embutidos de frango. Se concentra aí e manda vê, falô?)"

Não é de estranhar que a Zeca tudo,  lhe sugira um pretexto para falar de cinema, para invocar filmes e realizadores. O cinema é omnipresente na vida de Zeca e só a ele se permite transformar o bando dos três, num quarteto para si perfeito: Sexo, drogas, Rock & Roll e Cinema.

"Que fome de cinema, cacete. Que fome de mulher também, agora e sempre."

"Nada de culpas corrosivas nem de castigos iminentes em cinemascope."

"Depois, fez um resumo fulminante de algumas proezas quimio-anárquicas do cara, como a noite de 1966 em que os Doors foram expulsos do Whisky a Go Go, em Los Angeles, porque o Morrison, doidão, se pôs a berrar no palco “Mother, I wanna fuck you!”, na letra do The End, “que, aliás, toca no filme Apocalypse Now, do Coppola, que, aliás, foi colega do Jim Morrison no curso de cinema da UCLA”, pontificava aliasmente o Ingo."

"Agora, ficar puxando saudade de mulher, amigos, lugares, não é comigo. Não guardo fotos de nada nem de ninguém. Por isso que o meu cinema só fala de coisas que não existem e, portanto, não deixarão saudades. Pega o Holisticofrenia, por exemplo. Só tem cenas e personagens sem referência a nenhuma realidade diferente da que somente elas e eles instauram na tela."

"Todas lhe oferecem fatias e nacos dos embutidos, que ele vai devorando nas mãos de cada uma delas com grande gula e prazer, compondo uma brilhante metáfora erótico-antropofágica até o freeze final da imagem."

"O magro cabeludo tinha na cara uns óculos escuros de playboy anos 50 que lhe davam uma tremenda pinta de gangster de cinema independente do leste europeu, ou merda assim."  

"Silencioso e furtivo como Arséne Lupin (o do cinema, interpretado na tela por Lionel Barrymore), de modo a não acordar minha hospedeira, catei a calça jeans e a camisa de listras azuis, dobradas, lavadas, passadas e acondicionadas numa sacola de loja."

"No final, plena manhã, a puta lambia a beirada suja de pó do meu cartão de crédito, enquanto me ouvia explicar todo o potencial anarconiilista da poética patética da minha cinematografia apatifada pós-sganzerliana com sua narrativa brechtianoholisticofrênica e seus personagens transapocalípticos, e o grandíssimo caralho cocainado a quatro."


"Porra, já pensou, véio? Eu ia virar o novo bandido da luz vermelha do cinema brésilien, herói dos cineclubes, campeão de acessos no Youtube, e o cacete."


Uma vez que Zeca é o narrador, ele vê o mundo como um cineasta cínico com uma câmara na mão, enquanto mantém a outra, livre para cafungar, bronhar ou estimular a líbido de alguma parceira. Zeca como narrador, tem que usar as palavras e embora ele tenha lido muito boa literatura, está constantemente a incorrer no vício de ver e descrever a sua realidade com os olhos de um cinéfilo.

"Uma das vantagens do cinema sobre a literatura é essa, a de desobrigar o autor de nomear as flores nos cenários. Por mim podiam ser armênias silvestres, jambronas do campo, rabos-de-babuíno-da-Tanzânia, lambrequinhas-da-serra e o cuflorido-a-quarto."

"(Na literatura)…Qualquer extensão de tempo, aliás, cabe num punhado de palavras. No cinema é mais complicado. Você seria obrigado a criar alguma metáfora visual forte pra denotar o significado de uma palavra densa como eternidade. Um anjo de cemitério contra um céu estrelado, por exemplo. Se funcionar, a imagem ganha da palavra."

"Eu me sentia naquela câmara secreta do solar dos Usher — na versão pro cinema mudo, de 1928, do Jean Epstein, assessorado pelo Buñuel —, prestes a transpor os portais de inconcebíveis dimensões transumanas. Os contornos dos corpos apenas se divisavam na obscuridade. Difícil dizer quem ali tinha se entregado de alma e pálpebras à iluminadora cegueira, e quem, como eu, filava solerte os arredores através da gelosia dos cílios, flagrando os formatos, volumes e as cores do famigerado mundo visível, tão enganador quão desprezível, segundo a Wyrna, mas ao qual eu tinha me afeiçoado tanto ao longo desta encarnação, a única que me lembro de ter vivido até agora. A mestra, como meu olhar sorrateiro registrava, mantinha bem abertos aqueles olhos negros dela, bundinha sempre assentada sobre o divino calcanhar."

"A falta que faz uma câmera pra mostrar essas manobras. Um story board já quebrava um galho. Descrever com palavras é foda, mesmo que sejam só rubricas num roteiro, nada que aspire à imortalidade literária."

"Sigo o conselho do Amo: não quero virar escritor. Mais do que talento, me faltam saco e coluna vertebral pro ofício. Meu negócio é cinema, a exemplo do Robert Bresson, que, por sinal, filmou em 1945 um trecho do Jacques no “Les Dames du Bois de Bologne”, filme delicioso. Cinema e buceta. Mais buceta que cinema. Fomos feitos um pro outro, eu e o cinema, digo, eu e as bucetas, digo, o cinema e as bucetas, redigo. E lá vai mais um poemelho pra sua coleção:
movies
1.
O olho mora
dentro
do momento
2.
O verbo é lento
perde o tempo
do movimento"

"Aliás, você já reparou — e se não tinha reparado, repare agora — que esse meu sestro haicaico vem do fato de que o haicai é um fotograma de filme, um instantâneo visual, o mais perto que a linguagem verbal consegue se aproximar do cinema. 
Portanto, tente conservar meus haicaizinhos no seu texto final, pelamordedeus."

"Dei uma zapeada. Filmes, propaganda, programas de auditório, de culinária, reprise de novela. Na TVE um crítico literário míope feito uma toupeira explicava pro entrevistador que “a literatura é uma velha arte que tá de saída”. Escritores e leitores vão virar um clubinho dos 500, sendo que, no final, tudo se resumirá a uns tantos escritores e poetas batalhando para serem lidos por outros escritores e poetas. O mesmo vai acabar acontecendo com o cinema não hollywoodiano, dizia o crítico. Que se fodam, escritores, poetas, críticos e cineastas não hollywoodianos, decretei eu, dando um zap no controle."  

E o que acha Zeca das adaptações de obras literárias ao cinema ?


"Não faz sentido escrever um filme. O cinema tem que nascer das imagens. Por isso torço o nariz pra adaptações de livros, se o adaptador não se chamar Hitchcock. Aliás, o Hitch só se valia de noveletas populares de segunda ou mesmo de quinta categoria, de onde tirava somente o plot básico e os personagens principais. No “Psicose”, por exemplo, ele mandou o studio comprar todas as cópias do livro do tal de Robert Bloch, autor da história, para que ninguém soubesse o final. Acho meio ridículo isso. Se o cara não tem a manha de criar uma história original evocada por imagens, vai caçá sapo, malandro. Cinema é “Zéro de Conduite”, “Cidadão Kane”, “Acossado”, “Todas as Mulheres do Mundo”, “Terra em Transe” — histórias que só existem dentro dos filmes que o Vigo, o Welles, o Godard, o Domingos de Oliveira e o Glauber rodaram com roteiros originais saídos da cabeça e dos olhos deles. Quer saber o que eu acho? Adaptação — leia-se avacalhação — de obras literárias é pirataria oportunista de subcineasta com palavrório na cabeça e uma câmera na mão. E fodam-se as centenas de filmes brilhantes extraídas de textos literários que alguém poderia me jogar na cara — Hitchcock incluso. Aquela manipulação nos peitos da Sossô, por exemplo, mão branca minha, mão preta do Melquíades, aquilo é que é cinema. E ponto final."

E atenção que já se fala de uma adaptação de "Pornopopéia" ao cinema ! Vai ser foda ! Essa tarefa, prevista para a segunda metade de 2013, tomou-a a cargo Arthur Fontes, um nome já com algum currículo no cinema brasileiro, sobretudo na área das curtas e do documentário, sendo autor, por exemplo, de  "Trancado (por dentro)", de 1988, primeiro filme brasileiro a ser selecionado para o Sundance, "Primeiro pecado", de 1998 (um dos três episódios do longa "Paixão", eleito o melhor filme do Festival de Huelva desse ano) e do documentário "Família Brás -Dois tempos" de 2000 e 2011, que realizou com a jornalista Dorrit Harazim, ao jeito do britânico "Up" sobre "a família brasileira média".
Como é que Fontes vai contornar ou sublimar a questão essencial, aqui colocada por Zeca ? Como é que Fontes vai fazer jorrar cinema da seguinte fonte narrativa ?

"Nem os maiores ejaculadores de cinema pornô que eu já vi em ação exibiram jamais tamanha exuberância espermática. Aquele filhadaputa devia ter uma terceira gônada escondida em algum lugar de sua vasta anatomia. Sossô, por sua vez, não largava o ejaculante troféu. Ela devia achar que o brinquedinho lhe pertencia agora por jus boqueteandi."

E muitas outras se poderiam citar...
Só nos resta esperar até ver o filme nas telas.

"Isso tudo vai ficar do grande caralho no meu filme. Porra, se não vai. As plateias dos cinemas de shopping sairão encantadas da sala, e não terão outro assunto durante o chope, a pizza ou o sushi pós-cinematográfico."

Até lá disfrutemos da boa literatura  que é Pornopopéia e da dávida do cinema que  vive dentro de si.





sábado, 26 de outubro de 2013

☑ MORANGO E CHOCOLATE, de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío

Sabores e dissabores da revolução

"Fresa y chocolate" - Título original em castelhano.
"Morango e Chocolate" - Título em Portugal e no Brasil.
Origem: Cuba, México, Espanha e EUA. 
Ano: 1993. Linguagem: Castelhano.
Realização: Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío.
Argumento: Senel Paz (baseado no seu conto de 1990: "O lobo, a floresta e o homem novo") e Tomás Gutiérrez Alea.
Com: Jorge Perugorría, Vladimir Cruz, Mirta Ibarra, Francisco Gattorno e Marilyn Solaya.
Cinematografia: Mario Garcia Joya.
Música: José Maria Vitier.
Género: Comédia. Drama. Duração: 108 minutos. Cor.
Sinopse
Cuba, 1979. Diego um intelectual e artista homossexual, apaixona-se por um jovem heterossexual comunista, cheio de preconceitos e fortemente ortodoxo e doutrinado no aparelho comunista cubano. A princípio impõe-se a rejeição e a suspeita, mas pouco a pouco, fortalece-se um espírito de amizade que se sobrepõe a todos os rótulos e barreiras.
 
Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), foi o maior cineasta cubano e nessa área o rosto mais empenhado do regime de Fidel, tendo criado e dirigido o instituto que superintende o cinema cubano. O alinhamento com o regime, não o coibiu de algum criticismo sobre aspetos da revolução, como pode ser constatado no emblemático filme de 1960 "Memórias do subdesenvolvimento" e de forma mais subtil neste "Morango e chocolate".
Diego é o típico "maricon" com pretensões intelectuais e artísticas, que lê e cita Dostoevsky, enquanto toma chá francês: "Os personagens de Dostoevsky, sempre tomam chá." Ele tenta "engatar" David, o jovem marxista ortodoxo e heterossexual empedernido, ainda com estigmas de uma recente e traumática rejeição amorosa. E usa para tal todos os truques e seduções incluindo aqueles que tocam mais ao coração do jovem comunista, que apesar do seu empenhamento partidário revela uma ânsia incontida de conhecimento: o  imenso repertório cultural incluindo livros, discos de Maria Callas e obras de arte, vão seduzindo David mas não ao ponto pretendido por Diego. Mas rapidamente Diego percebe a impossibilidade da sua empreitada e sublima a sua paixão em amizade sincera, não faltando um inesperado suporte logístico para uma relação heterossexual do jovem comunista com uma vizinha, Nancy uma sensível e divertida comunista do aparelho, encarregue frequentemente de atividades de espionagem e controle, mas que no caso vertente foi toda canalizada para a região perineal do jovem.
O argumento desenvolve-se assim de forma divertida, expondo as contradições da sociedade cubana, às vezes de forma tão abertamente crítica que chega a surpreender, como no plano em que Diego à janela do seu apartamento, falando com David, reflete sobre o crescente empobrecimento e decadência da bela Havana. O suporte visual da narrativa é a um tempo só, sóbrio e impressivo, revelando as várias Havanas que coabitam numa fachada de monolitismo e que às claras, saboreiam misturam e partilham gostos tão diversificados como morango, chocolate, Marx, Fidel, Hemingway e Maria Callas.
Aqui  não há apenas  uma denúncia da intolerância e  da marginalização dos homossexuais dentro e fora do partido. Diego é como que um espelho da sociedade cubana, um exemplo  da diferença e da diversidade e das imensas potencialidade que encerra. Representa a resistência face à massificante doutrina oficial que tende a subalternizar o individuo à lógica do grupo. David, por sua vez, é o rosto "puro" de uma revolução, ainda por cumprir na plenitude.
 
 

☑ ESQUECIDO, de Joseph Kosinski

Esquecimento em curso
 
"Oblivion" - Título original em inglês.
"Esquecido" - Título em Portugal.
Origem: EUA. Ano: 2013.
Realização: Joseph Kosinski.
Argumento: Karl Gajdusek, Michael Arnd e Joseph Kosinski (Novela gráfica).
Com: Tom Cruise, Morgan Freeman, Olga Kurylenko e Andrea Riseborough.
Cinematografia: Claudio Miranda.
Género: Ação, sci-fi.
Sinopse
Num cenário pós-apocalíptico, resultado de uma guerra galáctica, a terra está devastada e em grande parte inabitável devido à radioactividade, encontrando-se o  remanescente da humanidade, presumivelmente numa lua de Júpiter, para onde é "sugada", por espectaculares meios tecnológicos a água do mar e outros recursos terrestres. Jack é um mecânico futurista, que com a sua colega Victoria, vivem numa estação espacial, que trata da logística desse procedimento de extração de recursos, cabendo-lhe a ele a específica função de controlar e reparar os drones, ou seja as máquinas voadoras armadas, que patrulham a terra e a livram de aparentes "Aliens" remanescentes, chamados sugestivamente "necrófagos", que vivem em catacumbas e que se opõem ao processo. Tanto Jack, como Victória e todos os humanos sobreviventes foram "desmemoriados", pela "Missão de controle", que governa tudo isto desde a "sede",  por supostas boas razões, para esquecer o pesadelo terrestre. Mas episódicas lembranças de uma mulher desconhecida persistem na cabeça de Jack, que além disso, com a missão a terminar, desenvolve uma estranha nostalgia pelas coisas da velha Terra e uma indecisão e mesmo renitência em a abandonar. Uma estranha descoberta - Uma mulher crio preservada numa nave encontrada despenhada na terra e a surpresa de verificar  que  a suposta organização de "Aliens terrestres", corresponde na realidade a um grupo de humanos, que alertam por sua vez Jack para outros aspectos técnicos da sua missão que ele desconhecia, levam-no a questionar-se sobre a natureza da sua missão e da veracidade de tudo o que  sabe.

 
Temos aqui um "Blockbuster", com caras conhecidas e deixando de lado os habituais preconceitos,  que enfermam do carácter pejorativo do rótulo e da oposição intelectualmente desonesta ao  cinema dito independente ou alternativo, discussão que tende a reduzir este tipo de filmes ditos "comerciais" a mero lixo, discutamos o que interessa: cinema e ideias. 
O argumento assenta muito no conceito de realidade e na função modeladora  que a memória nela exerce, num complexo jogo  de aparências e de essências, que trocam de papeis, num ponto culminante da narrativa, através do habitual "twist". Até aqui nada de novo. Aliás muitos outros filmes, têm idênticos desenvolvimentos, vindo-nos à memória:" Vanila Sky"/"Abre los ojos", "Desafio total", "O dia da independência" e  "O outro lado da lua", em que o expectador, identificado com um ou vários personagens, mergulha numa realidade sensível, que se vem a revelar alternativa ou ilusória.
Quanto à forma, que neste tipo de filmes é o que sobressai e que tenta relevar do conceito de espetacularidade, também não abunda a originalidade, evocando-nos a cada passo, outros universos visuais, que tornam penosa e entediante qualquer comparação, a começar pelo despautério de se lhe equiparar, seja sobre que pretexto for, o inspirado e mítico "2001- Odisseia no espaço" , que é como comparar  lata com ouro.
Os múltiplos clichés visuais que se sucedem numa lógica de submissão aos superiores interesses do entretenimento, passam ainda por cabotinas representações por parte de atores consagrados de Hollywood, que para além do mais, pela enésima vez, encarnam o herói americano salvador do mundo. Se o personagem de Tom Cruise ainda tem alguma complexidade psicológica, o de Morgan Freeman é meramente caricatural e unidimensional, infelizmente um traço da carreira deste dotado ator, cujo último trabalho decente talvez remonte ao longínquo "Tempo de glória" de 1989.
Então o que se safa neste filme ? Curiosamente para além de alguma nostalgia ecológica, que perpassa razoavelmente coerente em sugestivas imagens, ressalvo o impossivel triângulo amoroso, entre Jack, Victoria e Julia,  que lança uma inesperada ambivalência e profundidade emocional no enredo.
 

☑ O PASSADO, de Asghar Farhadi

O passado continua a ser uma terra estranha

"Le passé" - Título original em Francês.
"O passado" - Título em português.
Origem: França e Itália. Ano:  2013.
De: Asghar Farhadi (realização e argumento (com Massoumeh Lahidji)).
Com: Bérénice Bejo, Tahar Rahim, Ali Mosaffa, Pauline Burlet  e Sabrina Ouazani.
Fotografia: Mahmoud Kalari.
Género: Drama. 130 minutos. Cor.
Sinopse
Ahmad um Iraniano, volta a Paris 4 anos depois, após a sua separação da sua mulher, a Francesa Marie, com quem vai finalmente formalizar o divórcio. Após a sua chegada a sua ex, convida-o a ficar, durante esse processo, na casa que já fora de ambos e na qual habitam agora para além de duas filhas de Marie de uma anterior relação, um árabe de nome Samir com quem iniciara uma relação e o filho deste.
À medida que Ahmad se vai inteirando das transformações do tempo e se deparando com  surpresas atrás de surpresas, como a gravidez de Marie, é o passado de todos eles que acaba por dominar o  presente desta família.
 
Parti para este filme com expectativas bem altas. E isto porque me deram boas referências do trabalho anterior do Iraniano Asghar Farhadi, "Uma separação", de 2011 - que ainda não vi - a juntar a ter estado em competição em Cannes, onde Bérénice Bejo arrecadou o prémio da interpretação feminina e ainda  pelas críticas globalmente positivas, que tem recebido. E  finalmente, porque ainda não tinha visto um filme iraniano que fosse medíocre.
O início até que se revelou bem prometedor. Um belo plano de um reencontro, com um vidro de permeio e a mímica no lugar de palavras. Bem sugestivo e bonito. Depois a chuva diluviana que apareceu de repente, como que quebrando o encanto e apressando a narrativa para realidades  mais mundanas. E quando os dois já estão no carro e Marie inicia a marcha, é significativamente com uma marcha-atrás. E porque pressentiu a possibilidade de um choque nessa manobra, Ahmad gritou "cuidado !" e ambos olharam para trás pelo espelho. É preciso cuidado com o que está lá atrás, o passado é para levar a sério.
O que se segue até que é complexo e Farahdi é no início, subtil e cuidadoso a abordar as   ambiguidades e os equívocos, que as personagens vão semeando com as suas palavras e atitudes e a tensão que delas emana, demonstrando-se antes de mais que o passado é uma questão em aberto e que domina completamente a rotina desta família.
O problema aparece quando Farhadi resolve esgaravatar em vários terrenos, abrindo várias frentes de periclitante solidez, para um argumento que já por si mesmo era suficientemente complexo. O que resulta é um emaranhado  de linhas narrativas desconexas, a roçar o patético, metendo até a contribuição  estapafúrdia de uma trabalhadora ilegal, que subitamente adquire uma importância desmesurada no enredo, situação que é tratada com uma impressionante superficialidade e falta de senso social. Para já não falar do absurdo final, que bate em termos de pirosice todos os "the ends" melodramáticos de Hollywood juntos ! As pessoas têm depressões e por vezes tentam suicidar-se e quase sempre conseguem-no. Foi dito no filme. Farhadi escusava de tentar descobrir a pólvora neste caso concreto do seu filme.
Que Farhadi exibe um certo desconforto , porque é um Iraniano em terra ocidental, com a  cultura Iraniana  agarrada à sua câmara e com matizes ocidentais que não pode ignorar, sob pena de ninguém o levar a sério, é uma evidência. E tanto mais complexa é a situação, pois o filme trata muito desse encontro e coabitação dessas duas referências culturais, com pelo menos três personagens  árabes. E é preciso não esquecer que o argumento remete-nos essencialmente para questões amorosas. Sendo assim, onde está visível nas ações das personagens, o desejo, o ciúme e o rancor - já nem digo o sexo, que isso até se entende no contexto do filme - que são o sal do presente e do passado de qualquer relação amorosa ? Onde está um beijo ? Até um toque, que seja ? Onde está ? Estamos em França, no século XXI, presume-se, não no Irão...E a personagem principal feminina, do que sabemos dela, até gosta particularmente desses ingredientes...e há ali uma alusão de vingança em relação a Ahmad, que fica muito por explorar em termos emocionais e que seria, essa sim, uma interessante linha narrativa.
E este filme sendo tecnicamente bem feito, com uma cinematografia enxuta e visualmente atrativa, deixa muito a desejar em termos de consistência global das ideias que pretende veicular.
No fim sobra um evidente desconforto, porque este filme fica mal aos olhos ocidentais e dá uma imagem distorcida da grande riqueza do cinema Iraniano de Makkmalbaf, Panahi e Kiarostami, só para citar os mais célebres.
E nem por acaso, este filme com todos estes ingredientes, constituiu para Farhadi uma amarga lição e para nós  a evocação da  constatação que por outras razões, ficou famosa no livro do italiano Gianrico Carofiglio de 2004 e que foi adaptado em 2008, para o cinema pela sua compatriota  Daniele Vicari: "O passado é  uma terra estrangeira."

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

☑ MATOU, de Fritz Lang

M de Marcante

"M" - Título original em alemão (e em inglês).
"Matou" - Título em Portugal.
"M - O vampiro de Dusseldorf" - Título no Brasil.
Origem: Alemanha (1931). Linguagem : Alemão.
Realização: Fritz Lang.
Argumento: Egon Jacobson (artigo), Thea von Harbou e Fritz Lang.
Com: Peter Lorre, Ellen Widmann, Otto Wernicke, Theodor Loos e Gustaf Grundgens.
Fotografia: Fritz Arno Wagner.
Género: Thriller psicológico. Drama. 99 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Um assassino de crianças espalha o terror em Dusseldorf. A "caçada" levada a cabo pela polícia é de tal magnitude que os ladrões sentem-se limitados nas suas actividades, e dada a ineficácia da polícia decidem tomar eles o encargo de capturar o criminoso.
Parece incrível, mas M é um filme de 1931. É importante frisar isto porque há coisas que estão aqui a nascer ou no período neonatal. Eram os anos de maturidade do expressionismo alemão e a vanguarda também se fazia notar em força na sétima arte. Mas o "ovo da serpente", já tinha eclodido e as suásticas começavam a projectar as suas tenebrosas e ameaçadoras sombras. Fritz Lang (1890-1976), não era já na altura, um cineasta qualquer, com a magnificência de Metropolis (1927) a servir de principal cartão de visita. Foi assim natural que Joseph Goebbels, lhe propusesse a superintendência do cinema alemão, que o realizador rejeitou não tão perentoriamente como se imagina, porque as más línguas aventam que ele teria aceite não fora o medo de se ver descoberto o seu sangue judeu, por parte da mãe. De qualquer das formas, Lang foi para Hollywood, onde consolidou a sua carreira com muitos títulos importantes de que se destacam  a título de exemplo, "Rancho Notorious" (1952), "Corrupção" (1953) e "Cidade nas trevas" (1956). Na América, não granjeou grande simpatia, ficando com a fama de ser sádico com os atores e atrizes. Lang não apreciava especialmente as típicas "fake scenes" de Hollywood, tendo ficado célebre o episódio de "Western Union" (1941) em que Randolph Scott, se debate verdadeiramente  aflito, preso nos pulsos por uma corda verdadeira e rodeado de chamas, verdadeiras é claro... Regressou por breves períodos à Europa, mas manteve sempre a base na Califórnia, onde morreu em 1976, com 85 anos. A última participação no ecran, foi como ator (!) fazendo de si próprio no memorável "Desprezo" (1963) de Jean-Luc Godard, já revisto neste blog(aqui).
Voltando ao filme M,  embora este não seja um dos  expoentes máximos do expressionismo alemão no cinema, a sua influência já se faz sentir,  começando a nível do argumento, onde se releva a componente emocional, através de uma temática inquietante, exibindo-se  a experiência individual do medo  e a sua expressão colectiva,  sob a forma de paranoia. Estas linhas do argumento reflectem-se numa cinematografia em que sobressai a típica deformação formal, com manipulação da luz e criação de sombras e abstrações simbólicas indutoras de sobressalto, temor e mesmo pânico. Na narrativa, são numerosos os planos em que é evidente esta estética emocional, citando-se logo no início a sombra do assassino projetada sobre os escaparates da imprensa em que  sobressaem as  manchetes dos assassínios. Determinados elementos simbólicos têm idênticas conotações, como se pôde constatar com o  balão  que a mãe de uma das crianças desaparecidas, não pode associar a esse evento ao contrário dos espectadores que o podem fazer. No trabalho dos atores, sobretudo no de Peter Lorre, é também visível o primado das emoções e tal expressividade chega a ser particularmente marcante na mímica de Lorre, onde os aspectos da anatomia facial, como os olhos esbugalhados espelham bem o seu sofrimento interior.
O argumento não fica isento de leituras políticas, numa altura em que o nazismo começava a instalar-se no coração da Alemanha. Forçando a nota, podemos considerar os nazis, mais perto do perfil dos ladrões, na medida em que  prevalecem em organização e eficácia sobre as forças detentoras da lei e da ordem. Não deixa de ser também curioso o pormenor da caça, que é uma espécie de premonição sobre a grande caça aos judeus que viria ocorrer anos mais tarde, também eles considerados pelo sistema "anormais" irredimíveis que tinham que ser obviamente eliminados, depois de "marcados", então com a estrela de David e não com M, como no filme, mas o espírito é estranhamente similar.
M é mesmo magistral e marcante.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

☑ TRILOGIA DO "ANTES DE...", de Richard Linklater

Antes que desça o pano...

"Before sunrise" - Título original em inglês.
"Antes do amanhecer" - Título em Português.
Origem: EUA (1995). Linguagem: Inglês.
De: Richard Linklater (realização e argumento).
Com: Ethan Hawke e Julie Delpy.
Fofografia: Lee Daniel.
Direção musical: Fred Frith.
Género: Drama. Romance. 105 minutos. Cor.
Sinopse:
O jovem turista americano Jesse e a estudante francesa Celine, encontram-se por acaso num comboio de Budapeste para Viena. Jesse convida Celine para passarem o dia juntos em Viena e ela aceita. O tempo vai passando antes do voo marcado para a manhã seguinte. E assim, se estabelece uma ligação especial entre dois estranhos, que sabem que essa será provavelmente  a única noite que passarão juntos.
"Before sunset" - Título original em inglês.
"Antes do anoitecer" - Título em Português.
Origem: EUA (2004). Linguagem: Inglês & francês.
De: Richard Linklater (realização e argumento (com Julie Delpy & Ethan Hawk)).
Com: Ethan Hawke e Julie Delpy.
Fofografia: Lee Daniel.
Género: Drama. Romance. 80 minutos. Cor.
Sinopse:
Afinal Jesse e Celine, voltam a encontra-se nove anos depois, não por acaso, pois ela procura-o numa livraria parisiense, onde ele, agora um escritor famoso, faz a apresentação do seu novo livro, curiosamente sobre o encontro de Viena. Muita coisa se passou, depois da emocionada despedida na estação de Viena, onde prometeram encontrar-se 6 meses depois, o que não aconteceu. Em vez disso, o que aconteceu foi o continuar da vida, com novas relações para ambos. Mas agora sentem-se de novo ligados e ambos desejam passar o dia juntos, em Paris, antes do voo do americano marcado para o fim da tarde. Juntos de novo, com muita coisa a dizer um ao outro, antes do anoitecer...
                                                                              

"Before midnight" - Título original em inglês.
"Antes da meia-noite" - Título em Português.
Origem: EUA (2013). Linguagem: Inglês, francês, grego.
De: Richard Linklater (realização e argumento (com Julie Delpy & Ethan Hawk)).
Com: Ethan Hawke e Julie Delpy.
Fofografia: Christos Voudouris.
Direção musical: Graham Reynolds.
Género: Drama. Romance. 109 minutos. Cor.
Sinopse:
Quase duas décadas depois do encontro de Jesse e Celine em Viena e nove anos depois do seu reencontro em Paris, descobrimo-los juntos, entradotes, mais gordos e com filhos, na Grécia. Afinal sempre ficaram juntos... E que descobrimos nós, num dia das suas vidas ? Que eles formam um casal normal, com direito a toda a rotina e os altos e baixos da praxe. Incluindo uma séria discussão, em que ambos põem seriamente em causa o seu casamento. Muita coisa pode mudar antes que aquele dia acabe. Tudo pode acabar ou recomeçar antes da meia-noite...
                                                           
Quando Richard Linklater escreveu e realizou "Before sunrise", em 1995, era suposto ser apenas mais um filme, narrado de uma forma que era particularmente do seu agrado, ou seja, utilizando predominantemente diálogos entre duas personagens, quase em real-time, técnica que viria a revisitar com o denso noir "Tape", de 2001.
E de facto, "Before sunrise", visto assim, livre da companhia dos seus sucessores, impõe-se como um fugaz e delicioso sopro  de uma juventude mentalmente inquieta e generosa nas emoções e no amor que experimenta. Nesta fase, o carácter espontâneo  dos diálogos, que fluem céleres e vivos das bocas das personagens, são uma expressão de vivências ainda naïves, tudo sendo vivido "sem problema", num processo acelerado de crescimento e amadurecimento, mas ainda bem longe do mundo de responsabilização que se exige aos adultos. E este clima de ingénua dádiva às ideias e à paixão, contagia quem já passou e sentiu o mesmo,  nesta fase tão especial da vida.
É por tudo isto, que "Antes de amanhecer", que mostra a doçura incomparável de quando se é jovem e a noite  ainda uma criança e se fala do futuro, porque o passado ainda não aconteceu, é um filme que se guarda no rol das nossas  gratificantes memórias. Em rigor, é um filme que vale por si mesmo, como um fogacho, de uma juventude em descoberta de si mesma e de um lugar no mundo, e que bom que seria se tudo isto ficasse sossegadamente em suspenso e em aberto e o futuro coubesse todinho naquela despedida...
Postas estas considerações, então o que justificaria uma "sequela"? Excluindo a pouco prosaica  mas nada inverossímil  mais-valia comercial, neste nosso mundo  contemporâneo que privilegia a produção em série, não é despiciendo no âmbito do audiovisual acrescentar o culto de um certo "voyeurismo" sociológico, uma espécie de equivalente ficcionado da série documental britânica "Up", de Michael Apted, que em  1964 começou a fazer entrevistas na altura a crianças de 7 anos e posteriormente, seguindo-as de 7 em 7 anos, indo já os "sobreviventes" nos 56 anos (no oitavo episódio - 56 Up- de 2012). Ora esta análise fará todo o sentido, no terreno do documentário sociológico, em que Apted se move, mas já é bastante discutível no âmbito de uma ficção com as características da obra dramática em discussão.
Nove anos depois, na sequela "Before sunset", de 2004, a Linklater, juntaram-se Delpy e Hawk, na escrita do argumento, como se ambos, quisessem partilhar alguma da sua experiência pessoal e profissional, porque ambos já se movimentavam então na escrita e na realização de filmes.Talvez isto explique alguma coisa sobre este segundo filme, rodado em Paris, a cidade por excelência dos reencontros românticos e "casa" de Julie Delpy.
Neste "Before sunset", são injectadas as primeiras doses de realismo cinéfilo. Afinal os jovens, tinham era garganta e a tesão de ocasião, não foi suficiente para se reencontrarem conforme o prometido, embora agora já como adultos vividos e carregados de sonsice já sejam peritos em encontrar justificações pertinentes. Claro que Jesse já tinha dado ares de ser um escritor em potência e agora enriquecido com a experiência de uma noite única em Viena, a coisa materializou-se num livro. O que mudou em Paris face a Viena? O que trouxeram estes nove anos de interregno ? Um passado comum. Ambos tinham agora um passado juntos e podiam falar dele, e quem sabe, servindo como uma mola para o futuro, mas o que interessava mais era aquele presente que era para ambos um presente dos céus. E céus, era como se a vida toda, tivesse que ser vivida num só dia ! Até ao  anoitecer...
Claro que em Paris, temos direito a vistas privilegiadas e muitos diálogos espirituosos, servidos com generosas doses de ironia e auto-convencimento, porque eles embora se saibam ouvir e argumentar, são duas primas donas de inchada personalidade narcísica. No intervalo das palavras, que muitas vezes se atropelam umas às outras, lá arranjam um tempinho para fazer amor, mas isso fica implícito, porque Linklater é  um realizador inteligente e arruma o assunto numa elipse bem forjada.
E depois? Agora já é lícito querer saber do futuro destes dois marmelos, que nós adotamos quase sem dar por isso. Pois bem, a noite está quase aí, mascarada de fotogénico "sunset", propenso a despedidas amorosas. "Talvez nos veremos de novo, quem sabe ?"...
(Longa elipse de nove anos).
Eis-nos chegados ao terceiro "Antes de...algum semáforo temporal qualquer ". E este já não é nenhuma surpresa, estávamos à espera de uma sequela manhosa daquele "rendez-vous" de 2004. Só não sabíamos onde. Grécia? Um pouco de amor e a força telúrica das palavras no berço do pensamento racional, porque não ?
Também não é surpresa nenhuma que estejam casados, senão a coisa ganharia inesperados contornos psiquiátricos. Apesar de tudo, a normalidade é um conceito estatístico e neste caso aritmético. É só juntar um mais uma. Porque eles puseram-se a jeito e estavam a pedi-las. E nós também.
Agora, em 2013, são ambos uns cotas gordos, com estilo de vida, burguês e alternativo, de que as férias na Grécia, na companhia de lúcidos intelectuais, são um perfeito espelho. E com filhos deles próprios e de outra relação anterior, no caso do filho de Jesse, para reforçar o clima  de contemporânea normalidade.
Eles continuam a falar muito entre eles. Não são os típicos fala-baratos, porque das suas bocas nunca se arrotam postas de pescada, apenas se exalam pérolas da sabedoria. Aliás, a ausência de modéstia, continua a ser um traço da personalidade deste casal, apesar de alguma honestidade  intelectual, parecendo que o cabotinismo, assentou definitivamente arraiais, naquele ambiente familiar.
Linklater, filma esta prosápia toda com contido distanciamento, porque entre marido e mulher, nunca metas a colher. Deixá-los lá falar e caminhar e falar e dizer de sua justiça. Enquanto se ouvirem e o caldo não entornar, a coisa vai andando, porque enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
É um casal como muitos outros, agora a braços com responsabilidades e chatices domésticas, que os tesões de auroras e pôres-de-sol de antigamente, já não movem moinhos. Agora é que eles vêem o que é doce. Mas o que é doce nunca amargou, e eles lá vão  resolvendo os pequenos conflitos do dia a dia. Pelo menos até ao dia em que se passa o nosso filme, os outros para trás estão disponíveis como memória deles e resguardados da nossa curiosidade em inexoráveis elipses do celuloide.
Porque no dia do nosso filme, eis que uma grande tempestade  ameaça cair em cheio neste casamento. Quando eles se cansaram de falar e se dispuseram  a fazer amor, a coisa murchou subitamente - cuidado, desconfie-se sempre da lengalenga como afrodisíaca ! -  e a conversa degenerou de forma assaz maligna, falando-se  de fim do amor. "Acho que já não te amo". Com este negrume no horizonte, presume-se que antes da meia-noite, dê molho, porque do jeito que a coisa entortou, muito dificilmente, outra coisa dará...
Bem pelos vistos, antes da primeira badalada da meia-noite, não vamos saber mais novidades, se feitiços serão quebrados, se Jesse virará lobisomen ou Celine vampira.
Porque isso, é o que ficará por descobrir após a próxima elipse de nove anos.
Então até 2022 !

terça-feira, 22 de outubro de 2013

☑ O GANGUE DE HOLLYWOOD, de Sofia Coppola

Os donos do vazio


"The bling ring" - título original em inglês.
"O gangue de Hollywood" - Título  em Português.
Origem: EUA (2013). Linguagem : Inglês.
Realização: Sofia Coppola.
Argumento: Sofia Coppola & Nancy Jo Sales (baseado no artigo desta na Vanity Fair : "The suspect wore Louboutins" ).
Com: Katie Chang, Israel Broussard, Emma Watson, Claire Julien & Taissa Farmiga.
Cinematografia: Christopher Blauvelt & Harris Savides. Direção Musical: Daniel Lopatin & Brian Reitzell. Género: Biografia. Crime. Drama. 90 minutos. Cor.
Sinopse: Inspirado em factos reais. Um grupo de adolescentes, dos arredores de Los Angeles, obcecados com a fama, usam a internet para seguir celebridades, a fim de lhes roubar as suas mansões.


"Eu quero um dia  liderar um país". - Nicky, a filha.
" ...e assim é. Whooo..." -  frase com que Laurie, a mãe, finaliza as suas balelas espirituais, sobre "O segredo".

O argumento assenta num tripé manco: os adolescentes, os pais e os famosos. Neste filme, os adolescentes, não têm nada na cabeça a não ser a obsessão pela fama (e o proveito) dos famosos.
Os famosos, são escolhidos a dedo: todos são jovens, ricos, bonitos e com uma vida supostamente cheia e divertida.
Dos pais, apenas nos é permitido conhecer superficialmente uma das mães, a loira burra seguidora fiel do "segredo", os outros estão ausentes  da narrativa, uma conveniente metáfora do isolamento real a que são submetidos os filhos. Daí, este ser um tripé manco. 
Com estes pressupostos, a partir de uma história real, ocorrida entre 2008 e 2009 e relatada num artigo da Vanity Fair , por Nancy Jo Sales, co-argumentista deste filme, Sofia Coppola, construi uma narrativa consistente e carregada de sarcasmo em relação a um tema  bem contemporâneo, o fascínio e o seguidismo dos jovens em relação ao mundo dos famosos. E  esta cultura pós-pop da celebridade, deve muito a fenómenos relativamente emergentes como a Internet, as redes sociais, os smartphones e os "reality shows" da TV, por isso, na apresentação em Cannes, Sofia não podia ser mais clara, este filme não faria sentido há 10 anos atrás.
De forma perspicaz, a realizadora segue o modelo narrativo dos "reality-shows", sempre a partir de um ponto de vista exterior, com base nos corpos e nos seus gestos, ou seja nas aparências, sem perder tempo a explorar e a questionar a interioridade das personagens, olhar que apesar de algum afastamento, nunca revela frieza ou indiferença. Não faltam mesmo as poses, os close-ups e os "slow-motions", embalados com música pop, para o caso de estarmos distraídos e não saber onde estamos.
O mundo das celebridades e a sua relação com este "submundo" de aspirantes a famosos, realidades que se cruzam e perpetuam num feroz mutualismo e comensalismo mediáticos,  é também um alvo do olhar indiscreto e impiedoso de Sofia,  que  expõe a opulência e a frivolidade, deste modelo de vida.
Embora como efeito secundário, o filme  não resiste a um jogo provocador, insinuando-se como tentação e parecendo incitar um "olhar voyeur" sobre os objectos de desejo dos adolescentes - as casas, os carros, a decoração, a moda , as festas - espaços de beleza e sofisticação, que não são  habitados no filme, a não ser de passagem, pelos jovens, que se apropriam dos objectos como se fossem eles os donos.  Os donos do vazio. É como se os jovens nos fizessem uma visita guiada ao vazio, habitado temporariamente por eles.


domingo, 20 de outubro de 2013

☑ A PARTE DOS ANJOS, de Ken Loach

Oportunidade e redenção

"The Angels' Share" - Título original em inglês.
"A parte dos anjos" - Portugal & Brasil.
Origem: UK, França, Bélgica & Itália.
Realização: Ken Loach.
Com: Paul Brannigan, John Henshaw, Roger Allam, Siobhan Reilly, Gary Maitland & William Ruane.
Argumento: Paul Laverty.
Cinematografia: Robbie Ryan.
Direção musical: George Fenton. A banda sonora inclui o hit "I´m Gonna Be (500 Miles), by The Proclaimers.
Comédia. Drama. Crime. 101 minutos. Cor.
Prémio especial do Júri do Festival de Cannes - 2102.
Sinopse:
A história passa-se nos dias de hoje em Glasgow e segue o trajeto de cinco jovens  julgados por pequenos crimes, que são condenados a trabalho comunitário. Robbie, o mais carismático e esperto do grupo, com uma história de violência, drogas e álcool, sente o desejo de mudar agora que é pai, mas confirma diariamente como é difícil abandonar o mundo do crime, como o pai e os irmãos da namorada, lhe lembram constantemente, querendo vê-lo bem longe da sua família. Robbie estava longe de pensar que continuar a beber e a roubar e com uma pequena ajuda dos anjos, constituiria a oportunidade de redenção e do início de uma nova vida.
                                                     
Ken Loach continua um militante activo do Trotskismo e defensor da IV Internacional, contra todos os ventos e marés, mas o inconformismo e o realismo mais impertigados, que marcaram o cinema britânico, nestas quatro épocas de carreira do realizador, já não são o que eram. Claro que os temas da pobreza e da injustiça, da desigualdade social e da exploração capitalista, lá acabam por aparecer mas mais timidamente, revestidos com nuances de  desenraizamento e delinquência urbana. E para este dinossauro que não rejeita a etiqueta de  "realismo social britânico", com que se carimba os seus filmes, apesar das novas vestes de benevolência cinematográfica, o lema continua a ser "lutar, amar e sobreviver".
Este filme é interessante como mostra acurada  de uma corrente de violência, mas não se detém a analisar as suas causas e muito menos a adiantar soluções. É um Loach socialmente cínico, com costela homeopática, que sugere curar os males com o próprio veneno. Mas o optimismo final, expresso naquele happy-end moralista, acaba por ser forçado e uma nota dissonante no cinema interventivo do autor.
Pelo meio sobressai a ironia   de um argumento,  muito por mérito do whisky e da sua espiritualidade,  que tornam o filme agradável de se ver mas com um  cheiro e paladar que se reconhecem como de uma colheita mediana. 

sábado, 19 de outubro de 2013

☑ CREPÚSCULO DOS DEUSES, de Billy Wilder

It's a wild world, isn't it ?  It's wilder than life !

"Sunset Blvd." - título original em inglês.
"Sunset Boulevard" - Título alternativo em inglês.
"Crepúsculo dos Deuses" - Portugal & Brasil.
EUA (1950).
De: Billy Wilder (Realização e argumento (com Charles Brackett e D. M. Marshman Jr.)).
Com: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton, Anna Q. Nilsson & H. B. Warner.
Fotografia: John F. Seitz.
Música: Franz Waxman.
Drama. Film-noir. 110 minutos. Preto e branco.
Sinopse
Joe Gillis, um argumentista de Hollywood, arruinado e sem trabalho, vê-se na contingência de fugir do fisco,  que lhe quer penhorar o seu carro e  acaba, por acaso, por encontrar refúgio na mansão de Norma Desmond, uma antiga estrela do cinema mudo, desde há muito votada ao ostracismo pela indústria cinematográfica. Ela vive isolada do mundo, na sua mansão de Sunset Blvd, apenas com o seu mordomo,  não aceitando  o seu declínio e  e delirando  por um regresso em glória aos filmes. A atriz, vê no escritor a oportunidade de reentrar no meio e convida-o para trabalhar no guião do filme que imaginava materializar esse desejo. Renitente a princípio, Joe acaba por aceder e torna-se uma espécie de gigolo da antiga diva, acabando a relação por agravar até ao limite a crescente loucura de Norma.
                                

"- You're Norma Desmond. You used to be in silent pictures. You used to be big.
- I am big. It´s the pictures that got small."

"- We didn´t need dialogue. We had faces !"

"- The stars are ageless, aren't they ?"

Bem-vindo aos anos de ouro de Hollywood ! 
Duas décadas antes, por alturas da transição do cinema mudo para o falado, Hitler tinha contribuído involuntariamente para enriquecer o cinema de Hollywood com uma fornada impressionante de artistas da sétima arte, escorraçados do velho continente, que traziam consigo um acervo de sabedoria e sofisticação técnica que a indústria abraçou agradecida. Entre eles destacava-se Billy Wilder (1906-2002), na altura apenas um argumentista,  que se destacava pelo carácter cínico, mordaz e misantropo dos seus trabalhos, facto que não era alheio às agruras da sua juventude, ele que perdera os seus pais, em Auschwitz. Os guiões  de Wilder eram famosos  pela caterva de pormenores, que ultrapassavam em muito o desenho dos diálogos e da "mise-en-scène", incluindo  imagine-se, as posições da câmara e o tipo de planos indicados ! E facto importante, roteiro de Wilder não admitia revisões ou improvisações, as falas eram para seguir, letra por letra, virgula por vírgula, do que estava escrito !
Estava-se mesmo a ver que Wilder não se aguentaria muito tempo apenas como argumentista e à primeira ocasião lá estava ele a convencer a Paramount, de que só ele poderia transformar os seus textos em verdadeiro cinema !
E assim com uma carreira que cresceu verdadeiramente a partir das bases, Billy Wilder venceu e convenceu em Hollywood, ganhando o respeito e admiração do meio e do  público, de certa forma, o "sistema"  ia aceitando  os traços "subversivos" do seu cinema, desculpabilizados pelo seu primor técnico e por uma história pessoal de vida, que era uma lição para a América . E assim chegamos a este filme de 1950, o nono de uma carreira  já com alguns sucessos, destacando-se  os filmes,  "Pagos a dobrar" (Double indemnity), de 1944 e "O farrapo humano" (The lost weekend), de 1945.
E esta introdução que se faz ao filme "Sunset Boulevard", ganha sentido quando se compreende, que só Wilder poderia fazer um filme que ousava discutir as próprias idiossincrasias de Hollywood, pondo a nú o modo como nela se constrói e destrói uma carreira, como se reciclam e desempoeiram guiões, como se guindam  aos pedestais da fama e como se descartam as estrelas  em declínio. Tudo coisas que Hollywood preferiria não ter que revelar em público numa salinha escura, com as ferramentas e o pessoal da casa...
Talvez por isso, este filme tenha perdido grande parte das suas nomeações no  23rd Academy  Awards de 1951 (referente a filmes de 1950),  nomeadamente para "Eva" (All about Eva) de Joseph  L. Mankiewicz, incluindo os de melhor filme e melhor realização e Gloria Swanson tenha visto a estatueta de melhor performance principal feminina, ir parar às mãos de Judy Holliday, em " Nascida ontem".
Também seria condescendência demais por parte de Hollywood, galardoar essa auto-crítica corrosiva ao  modelo do seu próprio "show business", que  "Sunset Boulevard", simbolizava na perfeição !
Este filme encarna na plenitude o que é um clássico, na medida em que transporta continuamente para o presente e futuro as luzes e as sombras do passado de Hollywood, essa enorme máquina registadora e espelho quantas vezes  deformador das grandezas e misérias humanas. 
O tema da fama e do seu carácter efémero é bem simbolizado na figura de Norma Desmond, uma antiga rainha do cinema mudo, votada ao ostracismo e que supostamente, com o avançar inexorável da idade,  não se adaptou aos paradigmas emergentes, dominados pelos novos donos da  nova tecnologia "sonora". E esse papel de diva em declínio e em negação demencial estava mesmo "feito" à medida de uma Gloria Swanson, também ela uma importante atriz do cinema mudo, posta na prateleira, durante muitos anos, até que chegou a este filme como 3ª ou 4ª escolha. E as coincidências felizes não ficam por aqui, porquanto  o seu mordomo,  que na prática mantem de pé a logística infernal da loucura de Norma, é representado de forma assaz realista por Erich von Stroheim, grande ator e realizador do cinema mudo, discípulo de D.W. Griffith e autor dessa obra prima absoluta chamada "Cobiça" (Greed), de 1924 e que curiosamente dirigira Gloria Swanson em "The Queen Kelly", de 1929, filme cujas imagens passam a certa altura em "Sunset blvd.", para mostrar ao recém chegado argumentista de Hollywood, o passado glorioso de Norma. Mais tarde, aquando da visualização  de mais um curioso evento do cinema-dentro-do-cinema, com a espantosa sequência da visita de Norma aos estúdios da Paramount para visitar Cecil B. DeMille, o mordomo acha curial revelar um pouco mais do seu e do passado de Norma, devendando tratar-se de facto de Max von Mayerling, o realizador do cinema mudo, que descobrira Norma aos 16 anos e seu primeiro marido ! Para além do comentário implícito sobre a ascenção e queda de mais um simbolo de Hollywood, expresso na eloquente frase "Nesse tempo, havia três grandes diretores: D.W. Griffith, Cecil B. DeMille e Max von Mayerling", este facto revela-nos até que ponto pode ir a lealdade de uma pessoa face a alguém que idolatra em absoluto e que atinge a máxima expressão no eloquente final.
Há quem fale no tema do oportunismo, para descrever o papel de Joe Gillis, o argumentista "looser", brilhantemente representado por William Holden, mas  esta asserção é injusta e falha o alvo. Joe aceita a contragosto  o papel de gigolo e manifesta-o frequentemente, não sendo portanto o típico oportunista. É mais lógico que tal personagem encarne   um exemplo de alguém a bater à porta, lutando por entrar na máquina de sonhos, mas cuja  mediocridade ou no mínimo inadaptação aos tempos que correm em Hollywood, fazem dele apenas o papalvo apanhado no sítio e à hora erradas.
O filme é todo ele feito de imagens,  planos, sequências e cenas  inesquecíveis, desde a alucinante abertura até ao espantoso clímax final. Que dizer também da presença de Norma no "Stage" 18 onde DeMille rodava "Sansão e Dalila"? E da cena das "figuras de cera" , na expressão de Joe Gillis para descrever os parceiros de Norma no jogo de Bridge, todos eles figuras de proa do cinema mudo como Buster Keaton e remetidos à mudez e insignificância ? Numa obra-prima absoluta como esta, talvez não seja excessivo dizer que cada fotograma do filme tem muito que dizer.
O score musical de Franz Waxman é todo ele uma peça na engrenagem que não se dissocia da narrativa, está ali porque é preciso, estávamos ainda no tempo em que  aquela música clássica de fundo era um imperativo e não o enjoo em que se transformaria mais tarde.
Um verdadeiro "must", ainda pelos extras que mostram as cenas cortadas como o início alternativo, com Joe e os outros mortos da morgue a falarem das suas mortes e que foi retirado por causar gargalhadas no "preview. O "making -of" mostra-nos ainda a mestria e o engenho  de Wilder, por exemplo  na conceção da cena inicial com o corpo na piscina.
Dos melhores filmes de sempre para vários Institutos e associações de críticos, mas de forma mais incisiva um filme muito importante  para mim, que apenas agora o descobri. Se calhar, no momento certo, na curiosa interseção de ocasos  da vida, mas que pela minha parte se pretende bem diferente do representado no filme.

"You see, this is my life! It always will be! Nothing else! Just us, the cameras, and those wonderful people out there in the dark!...
All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up."