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sábado, 15 de junho de 2013

TRILOGIA DO CASAMENTO, de John Cassavetes

TRÊS FILMES DE JOHN CASSAVETES, CENTRADOS NO CASAMENTO, E NÃO SÓ...
John Cassavetes (1929-1989) é um nome incontornável para qualquer cinéfilo que se preze.
Considerado o pai do cinema independente e um genuino diretor de atores, epítetos que se ajustam bem, a quem como ele  gastava o que ganhava como ator, a fazer os seus filmes de baixo orçamento, totalmente à margem dos estúdios de Hollywood. Com isso, assegurava o controle total da sua arte, um verdadeiro trabalho de autor, impregnado de humanidade e realismo e cohabitado generosamente por figuras humanas como hippies, prostitutas, doentes mentais, crianças, gangsters, trabalhadores manuais, empresários, domésticas e strippers.
Desde a escrita do argumento, à direção de atores, impõe-se como um autor à parte, por vontade própria e por exigência da sua arte singular. Um visionário com uma legião de admiradores fiéis, mas também concitando à sua volta alguns pruridos naturais, atendendo a que desafiava e quase sempre desarmava com a  extrema simplicidade dos seus filmes, a sofisticação emproada da gigantesca máquina de sonhos de Hollywood. Os seus detractores, apontam-lhe a excessiva concisão e falta de rigor dos seus guiões, cujas lacunas seriam tipicamente preenchidas  por um acréscimo de improvisação, que nem sempre resultava mesmo com os seus habitués atores de peso como Gena Rowlands, John Marley, Fred Draper ou Seymour Cassel e muito menos ainda com a grande maioria do "cast" restante, constituída por "amadores" como a mãe e a sogra do próprio realizador. Mas é na sua cinematografia, considerada algo descuidada e demasiado artesanal, que se concentram as maiores críticas, não caindo no goto de alguns a sua reiterada recusa dos cânones académicos, na posição, movimentos e angulos da câmara e na profusão e aparente falta de  critério ou imprecisão dos close-ups, tipicamente alternando a focagem e a desfocagem, demanda de realismo que para eles, resulta inconsequente e pretensiosa, na medida em que, "ao contrário de Bergman", como fazem questão de frisar, se descobrem muitas caras mas poucos estados de alma.  Na mesma linha de pensamento, para esses críticos, a edição e a montagem, são consideradas deficientes e ilógicas. 
Mas o que para alguns são defeitos, para muitos constituem fontes de inovação e exploração de olhares alternativos, libertando o cinema dos espartilhos de um certo academismo diletante e bafiento, resultando numa obra mais próxima dos espetadores, das suas vivências e expectativas.
Os três filmes que se abordam em seguida, contam histórias simples, centradas na temática das relações amorosas e no casamento, desde a sua génese ("Tempo de amar") e maturação ("Uma mulher sob influência") até ao seu declínio e dissolução ("Rostos"), uma trilogia "à posteriori", uma vez que o último filme da série, é na realidade cronológica, o primeiro dos três.
O amor e o casamento e as suas múltiplas  condicionantes e variáveis, na pantanosa América dos anos 60 e 70, mostrados com o estilo característico de Cassavetes: argumentos e narrativas não convencionais, um olhar intimista e atento, resultando num fresco de emoções, mais do que num produto da inevitável lógica linear e causa-efeito do cinema "mainstream".

TEMPO DE AMAR ("MINNIE AND MOSKOWITZ")

"Minnie and Moskowitz"
EUA (1971).
De John Cassavetes, com Gena Rowlands, Seymour Cassel, Val Avery e Timothy Carey.
Drama. Comédia. Romance. 114 minutos. Côr.
Sinopse:
Minnie, uma curadora de museu, acaba uma relação que mantinha com um homem casado e torna-se desiludida com a vida, quando encontra um excêntrico  arrumador de carros, chamado Seymour Moskowitz.




Numa entrevista acerca deste filme, Cassavetes disse que ele é uma espécie de conto de fadas, dedicando-o a todas as pessoas que não casaram com a pessoa, à priori, "certa". Esta afirmação, suficientemente enigmática e ambígua do realizador, leva-nos a rebobinar mentalmente o filme e a repensar os perfis e a  adequabilidade,  das duas  personagens principais, que à priori, são pouco ou nada compativeis.De facto, Minnie é uma mulher culta, sofisticada, sensível e assertiva, que relativizou o fim de uma relação condenada ao fracasso, com um homem casado e seguiu a sua vida. Por sua vez, Seymour é um arrumador de carros à americana, semi-vagabundo, grosseiro e teimoso, mas com um bom coração. Foi por isso inteligente, a abordagem de Cassavetes, deste casal improvável, aligeirando o fundo dramático da narrativa, com pinceladas de humor e  filosofia de "snack-bar", como se contasse a história da bela e do monstro, com as cores e a moralidade do mundo hippie. Na verdade, o casal é incongruente até ao altar, onde o padre se junta à paródia, com um divertido "gag", despertando o riso involuntário (?) de Gena Rowlands, tudo normal no cinema de improvisos, que Cassavetes cultivava. E que bem que ficou  a cena ! Tal como de resto, o final em que o bigode de Seymour, rapado antes, numa jura de amor, voltou mágicamente ao seu sítio.
E Cassavetes filma tudo isto, com a espontaneidade de sempre, sem regras fixas. A música de fundo, que ele corta abruptamente quando lhe dá na telha, é bem esgalhada e as interpretações de Gena Rowlands, linda como sempre e Seymour Cassel, fazem o resto, ou seja um bom filme, que fica bem, nesta abertura de trilogia, numa  divertida génese  do amor e do seu inevitável fruto, o casamento...

UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA ("A WOMAN UNDER THE INFLUENCE")

"A woman under the  influence"
De John Cassavetes, com Gena Rowlands, Peter Falk e Fred Draper.
Drama, 146  minutos. Côr.
Sinopse:
O casal Longhetti (Nick e Mabel), vive nos subúrbios de Los Angeles, com as suas três crianças. Ele é um dedicado trabalhador manual da construção civil e ela uma doméstica com instabilidade mental, que se vai revelando cada vez mais um problema para a família, culminando no seu internamento temporário. Como lidar com a doença mental de alguém que se ama ?

 

Neste filme, Cassavetes retoma a temática do casamento, já numa fase de consolidação familiar, recorrendo a uma família tipo, dos subúrbios de Los Angeles, no início da década de 70. 
Nick (Peter Falk), é um trabalhador da construção civil, que trabalha duro para sustentar a família, que vive desafogadamente, o sonho americano, numa espaçosa casa, onde a sua esposa Mabel (Gena Rowlands), cuida das lides domésticas e dos seus três filhos pequenos. Mabel, demonstra problemas psicológicos, que se vão agravando e interferindo com o normal funcionamento da família. A princípio, Nick tenta aceitar a "diferença" da mulher, mas com o tempo, vai acumulando impaciência, intolerância e incompreensão, que se materializam a dada altura, na decisão de  internar  Mabel numa instituição de saúde mental.
Cassavetes, mostra-nos em expressivos close-ups de Mabel e das pessoas das suas relações, o verdadeiro "rosto"  dos comportamentos limites e mesmo da doença mental, entendida não como um rótulo genérico, mas como um problema concreto, gerador de sofrimento na pessoa em causa e na sua envolvência. Até certo ponto, o próprio conceito de loucura, é posto em causa e com o decorrer da narrativa, a empatia com Mabel, leva-nos à aceitação desta mulher sensível e incompreendida e ao repúdio da ignorância e insensibilidade do marido, que  se revela mais doente que a própria mulher. O internamento, ao contrário de outros filmes, é ignorado nos seus pormenores, como se a Cassavetes interessasse mais, os efeitos da ausência desta mulher do seu ambiente familiar e o foco de verdadeira insanidade fosse desviado para o marido, nomeadamente na caricata cena da visita  à praia com os filhos. Neste contexto, se desvenda os contornos enigmáticos do título do filme, ao admitirmos que aquela mulher ao ser institucionalizada, foi usurpada do seu quotidiano normal, mas foi também  subtraída à influência opressiva do marido. No fim é reposta uma certa "normalidade", pese embora as idiossincrasias de Mabel, mesmo depois do internamento, parecendo evidente que Cassavetes queria mostrar mais os problemas do casamento e não tanto expor uma suposta doença mental, que nunca foi explorada, a não ser pelo que deduzimos dos comportamentos "borderline" de Mabel. Mesmo descontando o facto da magnífica música que todos partilhamos, não  a partir da sua aparelhagem de som, mas sim do âmago das suas deliciosas alucinações auditivas, traduzir semiologia de índole psicótica!
Gena Rowlands, que ganhou o globo de ouro e foi nomeada ao Oscar de 1975, com este filme, tem aqui uma assombrosa demonstração de representação e um registo humano inesquecivel.
Cassavetes com uma abordagem poética, tecida de compaixão e de rara sensibilidade humana, mostra-nos o lado escuro de um casamento, sob a influência de comportamentos e diferenças limite, iluminando a doença mental, com um olhar moderno, deveras inovador para a época.

ROSTOS ("FACES")

"Faces"
EUA (1968)
De John Cassavetes, com John Marley, Gena Rowlands, Lynn Carlin, Fred Draper, Seymour Cassel e Val Avery.
Drama, 130 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Richard Forst, é um bem sucedido financeiro, que passou a meia idade e que descontente com o seu casamento com a jovem Maria, decide divorciar-se, procurando consolo em Jeannie, uma prostituta de ricos. Entretanto, Maria, numa noite de copos, envolve-se com um jovem e tenta o suicídio...


Depois das cores vivas da génese, crescimento e amadurecimento do amor e do casamento, trazidas nos dois filmes anteriores (na verdade posteriores), nada melhor, que  este filme de 1968, a preto e branco, para retratar a sua dissolução e emblematicamente encerrar esta trilogia sobre este tema.
De certa forma, a cronologia, nos filmes de Cassavetes é arbitrária, o que conta é a substância dos afectos e desafectos, das emoções e das suas consequências e não o tempo e o espaço em que ocorrem e se quisermos mesmo ir mais longe não interessa uma identidade concreta das personagens que aqui podem se chamar Maria e serem esposas dondocas e noutro filme fazerem de Mabel e serem domésticas neuróticas. 
Este anacronismo, tem tanto de casual como de lógico, como se tivéssemos que voltar atrás no tempo histórico à procura de algo que nos escapou do cinema de Cassavetes e só se percebessem no fim, coisas ditas no princípio ou vice-versa.
Bem entendido que isto de trilogias, são leituras  nossas a que o realizador é muitas vezes alheio. 
Neste filme, os rostos espelham de forma eloquente os estados de alma das personagens.É um filme, que retrata como poucos o vazio de valores e de afectos das pessoas de uma certa classe média da América do pós guerra e o seu reflexo nas relações afectivas que são pautadas pela superficialidade, pragmatismo e hipocrisia.
Cassavetes e a sua entourage habitual, estão à altura das circunstâncias, neste belíssimo  filme com tons convenientemente crepusculares.

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