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sábado, 20 de julho de 2013

☑ A TRILOGIA DE APU, de Satyajit Ray

Três vezes cinema em estado puro

Em 1955, Satyajit Ray, dá-se a conhecer ao mundo com um trabalho  gigantesco, fazendo juz ao seu imponente porte físico de quase dois metros. Sem qualquer experiência prévia  nas artes cinematográficas e munido apenas de boas ideias, de uma delicada sensibilidade humana e de um apurado sentido estético, atreveu-se a realizar uma das obras mais marcantes do cinema. Com a dose habitual de exagero que inspiram as figuras superlativas, mas genuinamente impressionado, Akira Kurosawa, disse uma vez que alguém que nunca viu um filme de Ray equivalia a  ter vivido sem ter visto a lua e o sol.

Os três filmes da trilogia, que se completou apenas em 1959, com a ajuda de um subsídio estatal e com outros trabalhos de permeio, como o fantástico "A sala de música" de 1958, podem ser vistos individualmente como obras singulares e plenas, mas é no seu conjunto que mais sobressai  a delicadeza do retrato das grandezas, fragilidades e limites do ser humano .
Admirável obra de arte, marcada ainda por uma fotografia prodigiosa de Subrata Mitra e pela música inspiradora de Ravi Shankar.


☑ O LAMENTO DA VEREDA

"Pather Panchali"
India (1955). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Kanu Bannerjee, Karuna Bannerjee e Chunibala Devi.
Drama. 119 minutos. Preto e branco.
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee) 
Sinopse:
No início do século XX, Apu é um rapaz nascido de uma pobre família bramanica, numa aldeia em Bengala na Índia.O pai é um sacerdote e poeta, que não ganha o suficiente para sustentar a família. Durga, a irmã de Apu, rouba fruta dos pomares dos vizinhos para alimentar uma tia idosa, mas este é apenas um dos muitos problemas que a mãe das crianças tem para assegurar a sobrevivência da família.

 
Antes de mais, este é um filme sobre a contingência e a vulnerabilidade da condição humana, reveladas pela perspectiva dos seus extremos etários: Durga é a menina que rouba fruta, para a sua pobre familiar idosa, a quem observa atentamente enquanto esta se alimenta. A velha, por sua vez é a companhia privilegiada da menina, a quem conta histórias de embalar.
Este é também por isso, um filme sobre a prevalência da solidariedade humana sobre os preceitos morais encarados de um ponto de vista formal e abstrato.
Apu, o irmão mais novo, assiste a tudo isto com a inocência e a cumplicidade do seu olhar infantil. Ele estende essa natural curiosidade a outros aspectos da dinâmica do lar e da comunidade, apercebendo-se do trabalho precário e mal pago do pai, do significado das suas ausências e comungando dos seus sonhos e frustrações, reflectidos nas condições de penúria da família. Pather Panchali, é a este respeito, um  retrato de sobrevivência e tenacidade humana no contexto de uma  extrema pobreza.
Com a irmã, Apu aventura-se na descoberta do mundo desconhecido que se abre para além dos limites da comunidade, explorando as florestas e os prados, cortados pelo  caminho do ferro, que abre horizontes ainda mais longínquos do que o olhar permite.
Este é também um notável filme sobre a infância, o crescimento e a descoberta do mundo, que Ray com uma cinematografia bela e irrepreensível partilha connosco.
Quando a irmã morre, Apu depara-se pela primeira vez com a ausência irreversível de alguém que ama. E logo trata de extrair a primeira consequência dessa perda dolorosa, protegendo a memória da irmã, ao fazer desaparecer para sempre o colar que ela roubou e que mantinha escondido. Mais do que a consciência da perda irreparável, este  filme valoriza o papel da memória e da proteção devidas a quem se ama.
A morte solitária da idosa, na sua pungente solidão e comunhão com os elementos é o contraponto natural da morte precoce e inesperada da menina, em imagens que marcam pela sua lógica orgânica.
Ao contemplar e se deter nos ínfimos pormenores dos corpos e nos seus irrepetíveis movimentos e ao  reflectir neles a radical autonomia e inquietante indiferença do meio físico, Ray opera o milagre da revelação do espírito secreto  das pessoas, dos objectos e da natureza. 
Uma serena contemplação de um mundo em  vital  mutação  e uma tocante meditação sobre o crescimento, e a consciência da fragilidade e dos limites da espécie humana. 


☑ O INVENCÍVEL
"Aparajito"
India (1956). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Kamala Adhikari, Lalchand  Banerjee e Kali Bannerjee. 
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee)
Drama. 110 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Apu vive em Benares, onde o seu pai é sacerdote. Após a morte deste, a família move-se para uma aldeia Bengali, onde é ajudada por um tio. Apu esforça-se para entrar na escola local e logo se destaca, ganhando uma bolsa para estudar em Calcutá. Isso implica deixar a sua mãe já doente, sozinha e ainda trabalhar árduamente em Calcutá para ajudar a pagar os estudos.


Este filme inicia-se como a sequência final da viagem iniciada em Pather Panchali, da aldeia bangali até à cidade santa dos Hindús, Benares (Varanasi), nas margens do Ganges, onde o pai de Apu conseguira um emprego como sacerdote.A primeira parte deste filme passa-se, portanto, em Benares e retrata o quotidiano de Apu e da sua família num cortiço da velha cidade, mostrado com a mestria e a simplidade que Ray empresta à sua obra, sobressaindo a bela fotografia realista da velha cidade Hindú e dos seus rituais.Um quotidiano ordinário de uma família pobre mas remediada, até que Apu é de novo confrontado com a perda, agora do pai, o que  precipita  nova mudança para outro ponto da região de Bengala, sob a proteção de um tio. É aqui, nesta segunda fase do filme, que o adolescente Apu começa a lutar por um futuro melhor, esforçando-se nos estudos, que o levariam na terceira parte do filme a Calcutá, onde inicia estudos universitários, em condições particularmente dificeis. É  nesta fase realista, que o filme mergulha nas questões mais marcadamente sociais, como as condições de habitabilidade e de emprego na populosa e pobre Calcutá dos anos 20.  Mas é curiosamente  nesta fase que o filme emerge como um retrato poético e pungente das relações entre mãe e filho, trazendo de volta o melhor do mundo humano revelado em "Pather Panchali".
Uma vez mais, um prodígio de sensibilidade e de admirável simplicidade nos retratos humanos.Uma visão a um tempo realista e poética do sofrimento humano, da saudade e da perda. Um hino à tenacidade dos que perseguem o rasto dos sonhos.
Imagens que jamais se deixam apagar na lenta erosão das nossas memórias.








☑ O MUNDO DE APU

"Apu Sansar"
India (1959). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Soumitra Chatterjee, Sharmila Tagore e Alok Chakravarty.
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee)
Drama. 105 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Apu acabou os estudos, sem o bacharelato e não tem trabalho fixo, vivendo de biscates e acalentando o sonho de ser escritor.Um velho amigo dos estudos convida-o para um casamento na sua terra natal e Apu viaja com ele, acabando por ser ele a substituir o noivo, que se revelou incapaz. Um casamento de circunstância que se viria a revelar uma grande história de amor com um fim trágico, quando Aparna a sua mulher morre no parto, atirando Apu para um enorme sofrimento e desespero.


O fecho desta trilogia, traz-nos Apu na idade adulta, embrenhado na luta pela sobrevivência em condições de sub-empregabilidade e de pobreza. A visita de um velho amigo de estudos, melhor sucedido do que ele, constitui um renovado impulso ao velho sonho de ser escritor, adormecido e subjugado pela lógica  da dura realidade do dia a dia. Este facto e a circunstância de um casamento inesperado, projectam este filme para a dinâmica e imprevisibilidade afectiva das relações inter-pessoais, especialmente amorosas e não se resume à mera implementação de um guião romântico, uma vez que Ray não perde de vista as referências sociais que se impõem pelos olhos adentro e não cai no sentimentalismo lamechas.
Um filme que não destoa da tónica dominante da trilogia, mas na realidade, está um furo abaixo dos dois precedentes.
Não obstante, trata-se de uma  meditação intimista sobre a validade e a adequação dos sonhos à realidade quotidiana. Mais uma vez um retrato pungente e sublime sobre a perda e a hipótese de um recomeço.

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