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quarta-feira, 31 de julho de 2013

ANDREI TARKOVSKY E WOODY ALLEN

“O espelho”, de Andrei Tarkovsky e “Os dias da Rádio”, de Woody Allen.
Duas formas de fazer cinema.

"O espelho", de Andrei Tarkovsky

 "Zerkalo" (URSS, 1975)
"The mirror" (Inglês); O Espelho (Portugal e Brasil).
De Andrei Tarkovsky, com Margarita Terekhova, Oleg Yankovskiy, Filipp Yankovskiy, Ignat Daniltsev e Nikolay Grinko.
Biografia. Drama. Russo. 108 minutos. Cor.

Sinopse
Às portas da morte, um homem quarentão evoca as memórias do seu passado. A sua infância, a sua mãe, a guerra. Embora as lembranças sejam muito pessoais, é também a memória da nação Russa que vem à tona...







"Os dias da Rádio", de Woody Allen

"Radio Days" (EUA, 1977)
"Os dias da Rádio" (Portugal). "A era do Rádio" (Brasil).
De Woody Allen, com Mike Starr, Paul Herman, Don Pardo, Dianne Wiest, Mia Farrow e Julie Kavner.
Comédia. Inglês. 88 minutos. Cor.

Sinopse
Evocação nostálgica da era dourada da rádio, em 1942 em Rockaway, New York, através de uma série de histórias de personalidades deste meio de comunicação, interligadas com aspetos da vida de uma família de trabalhadores da cidade.








Não creio que haja uma diferença muito grande entre os dois no respeito ao Cinema e aos seus mestres.
São igualmente pessoas com alguma obsessão sobre os porquês do Homem e seus limites. Um profundamente religioso, o outro tocado pela angústia dos que não têm fé.
Os filmes tratam sobretudo da MEMÓRIA.
Em Woody Allen (WA), as recordações ancoram-se na realidade mais ou menos histórica. Realidade objectiva e comum a um grupo, em determinada época. Por acaso a mesma de Andrei Tarkovsky (AT). 
Em AT é uma memória individual, filtrada e exposta tal e qual. Onírica, como são muitas vezes os factos que recordamos, sobretudo quando acarretam lembranças mais ou menos traumáticas, como divórcios  paternos, guerra e conflitos próximos. Só na medida em que é humana é também comum a uma comunidade com um contexto muito diferente do de WA.
A utilização da cor em WA, remete-no para a ilustração (brilhante) de um “glamour” e sublinha a harmonia de um tempo que se recorda quase sempre feliz.
Em AT, serve para tentar descrever estados de espírito que vivem apenas no autor.
O ritmo e o encadeamento das sequências em WA, tentam tornar credível o relato e os atores procuram ser quase figuras "históricas". Transportam-nos para um mundo real, já vivido e credível.
AT não procura contar uma história ou relacionar de forma consistente os factos. Eles existem enquanto são contados. Eles existem para o narrador que os recorda. Não para o espectador.
WA tenta falar com o espectador, fazê-lo viver consigo uma lembrança.
AT fala consigo próprio e apenas tenta colocar em ordem a sua vida passada.
A única questão importante deste meu arrazoado confuso, tentarei explicitar assim:  Porquê estas obras que são tão diferentes como tentei provar, são igualmente dignas da admiração dos amantes de cinema? Eu acho que a chave será a aproximação a qualquer destes filmes com a mesma expectativa e curiosidade com que nos aproximamos de uma outra forma de arte ou assim considerada. Poderemos então perceber que as suas diferenças de forma e conteúdo não são defeitos de um ou de outro. Não devemos recusar um filme como “Os Dias da Rádio” em nome da arte e nunca um filme como “O Espelho” em nome do entretenimento.
Os filmes que aborrecem algumas pessoas não são os mesmos que aborrecem outras.

domingo, 21 de julho de 2013

☑ O SALÃO DE MÚSICA, de Satyajit Ray

Música para o coração 
 
"Jalsaghar" (bengali); "The music room" (Inglês).
Índia (1958).
De Satyajit Ray, com Chhabi Biswas, Sardar Akhtar, Gangapada Basu  e  Padmadevi.
Drama psicológico. Música. 100 minutos. Preto e branco.
 
Sinopse:
Biswambhar Roy é um aristocrata e o último do seu reino. Com o tempo, este outrora grande senhor feudal, foi perdendo dinheiro e poder até ficar à beira da ruína. Mas ele é orgulhoso e acha que deve manter o estilo de vida da sua linhagem. A ostentação é mais visível na maior e sumptuosa divisão do seu palácio: o salão de música. Ele contrata os mais reputados músicos e dançarinas e  convida as pessoas mais importantes da região, para as suas "soirées". A sua mulher tenta controlar os gastos, mas a festa de iniciação religiosa do seu filho adolescente, acarreta a perda das últimas jóias da família. Atingido pela tragédia, ele manda encerrar o salão de música e entra em depressão e letargia, até que numa última "soirée", o resto da fortuna familiar será consumida...

 

Enquanto esperava por financiamento para completar a "trilogia de Apu", Ray teve ainda talento e meios para nos brindar com outra obra prima, que em termos de notoriedade é ofuscada por aquela, mas na realidade trata-se de um dos grandes filmes de sempre, não sendo por acaso que consta no vigésimo lugar na lista dos 100 melhores filmes de sempre do "Cahiers de cinema".
Este "salão de música", tem muito de pessoal  ou não fossem as origens do realizador similares às da aristocrática personagem do filme. E isso nota-se na atenção que Ray concede aos ínfimos pormenores do cenário e da encenação.
A história de um velho aristocrata arruinado, perseguido por dolorosas recordações e consumido pela culpa do trágico fim dos seus únicos familiares, é retratada com a mesma serenidade espiritual e complexidade emocional e com idêntica riqueza gráfica, já aparente nas duas obras precedentes, "Pather Panchali" e "Aparajito".
O ator Chhabi Biswas, que representa o "zamindar" arruinado Huzur Biswambhar, tem uma comovente "performance", neste drama psicológico, sendo inesquecíveis os close-ups das suas expressões, reveladoras da profundidade das suas emoções. E Ray ficou tão devastado com a sua morte em 1962, que nunca mais retratou personagens masculinas maduras nos seus guiões.
Roy, outrora incontestável senhor da região é nestes tempos ultrapassado por um novo rico, sem sensibilidade e sem cultura e não passa então de uma caricatura de poder,  apenas passando para os outros  a imagem imutável  de um trágico orgulho. E qual rei Lear, desperta em nós a mesma empatia, doravante a vertiginosa fuga à realidade. O seu último reduto é o magnificente salão de música e os  dispendiosos concertos que nele patrocina. 
O salão de música, com todo o luxo que ostenta, os retratos da linhagem aristocrática nas suas paredes, o candelabro e o enorme espelho que reflecte a pose orgulhosa do seu proprietário, é ele próprio uma extensão  física e espiritual de Roy e um personagem animado que se exprime tanto pelo silêncio em contraste metafísico com  a eloquente música das "soirées", como por transformações subtis, como oscilações no candelabro e variações de luminosidade que reflectem os humores e as expectativas do seu dono.
Por tudo isto, as sequências dos concertos são um bálsamo para os sentidos.
Mas este filme é sobretudo um fascinante retrato psicológico, de um homem na terceira idade da vida, que tudo teve e tudo perdeu, menos o seu espírito indomável que nele sobrevive. Estamos perante uma imponente obra de arte, um legado impressionante de beleza e espírito. 
 
 

sábado, 20 de julho de 2013

☑ LORE, de Cate Shortland

Uma história para além da inocência

"Lore"
Austrália, Alemanha e UK (2012).
De Cate Shortland, com Saskia Rosendahl, Nele Trebs, Ursina Lardi e Kai-Peter Malina. 
Argumento de Cate Shortland e Robin Mukherjee, baseado no romance de Rachel Seiffert "The drak room" (2001).
Drama. Thriler. Guerra. 109 minutos. Cor.
Sinopse: 
Lore, filha de oficiais das SS entretanto presos, atravessa uma Alemanha derrotada e ocupada pelos aliados, desde a Floresta negra até Hamburgo, casa da sua avó. Responsável pelos seus quatro irmãos menores e na companhia de um estranho, em quem tem que confiar apesar da sua pessoa significar à partida ódio e desprezo, enfrenta uma longa caminhada exterior a par de uma não menos penosa  viagem interior, num doloroso processo de amadurecimento.

 
Já em "Salto mortal", o seu primeiro filme, realizado em 2004, Cate Shortland, ensaiara um problemático processo de amadurecimento de uma "teenager", que abandona a casa dos seus pais em busca de uma vida autónoma.
Neste seu segundo registo, a realizadora Australiana, volta ao de leve ao tema, mas torna o processo de emancipação muito mais complexo e doloroso. Neste filme estamos perante uma "teenager", que forçada pelas circunstâncias tem que rever toda a sua vida e os seus valores  para amadurecer rápidamente e sob a sua égide guiar o processo de crescimento dos seus irmãos mais pequenos.
Cate Shortland, de origem judia, volta a um tema quase tabu e a um terreno deveras pantanoso que ainda desperta mais emoção que razão e em que se torna difícil pisar solo firme, fora  da "verdade" oficial e socialmente aceite. É por isso, que conceder aos nazis derrotados, invadidos e humilhados, a possibilidade de exporem o seu  ponto de vista, sem que isso signifique a defesa do negacionismo, é algo que com o perfil desta realizadora e com esta escala de visibilidade é novo e importa realçar, mesmo que se percebam as razões pelas quais  tal abordagem provoque a fúria e o repúdio do alinhamento crítico mais tradicional.
Na verdade, Cate usa apenas a Alemanha destroçada e a sua ideologia em ruínas como um pretexto e um mapa para ilustrar uma história de crescimento e de superação, de perda da inocência  e de transição para a idade adulta, que poderia ser uma metáfora da própria Alemanha, se a realizadora  não se furtasse inteligente e conscientemente ao fundo da questão política e não se refugiasse no essencial das questões humanas, permidindo-se apenas inquietar-nos com um jogo de afetos baralhados por preconceitos. E mais ainda, subvertendo os papeis tradicionais atribuidos nas fábulas  do mundo infantil, tão repetidamente vindas à baila, na narrativa. Nesta história o "capuchinho vermelho" que se desloca a casa da avozinha, não é tão linearmente indefeso ou um exemplo de suprema bondade, nem o "lobo mau" que a persegue, tão radicalmente perigoso, como as aparências sugerem. E para baralhar, não sabemos realmente quem é aquela rapariga que chegou a casa da avó e quem a espera. Em todo o caso a perda da inocência infantil e o processo de superação e crescimento são  assinalados simbolicamente pela quebra dos pequenos animais da floresta, em cerâmica...
O filme é de certa forma um duplo "road movie", a um só tempo, interior no processo de cicatrização das feridas e na superação dos traumas e exterior na descrição factual de uma longa viagem num país destroçado pela guerra e dividido pelos vencedores.
E Cate Shortland entra a matar nos rostos dos personagens em rigorosos enquadramentos e oportunos close-ups que revelam o que não parece visivel e passivel de explicação por palavras, como na cena de grande tensão e conflito interior, em que Lore, uma excelente Saskia Rosendahl, usa o alegado judeu para a sua  masturbação.
Por tudo isto um filme importante e imperdível, uma das gratas surpresas da colheita cinéfila de 2012.


ENTREVISTA DE CATE SHORTLAND



Publicada por Pilar de Paranhos




IMPRESSÃO DO FAROL DE LEÇA SOBRE O FILME LORE

Um filme muito interessante.
O tema não é muito comum: O colapso na Alemanha.
O drama dos vencidos e principalmente dos que pouco estavam envolvidos (pela sua condição) no dia a dia do conflito.
O exodo de uma familia através da terra ocupada e cheia de armadilhas, enfrentando a sua própria visão dos outros, construida por anos de doutrina.
Um filme que consegue manter a distância e a ambiguidade própria das situações em que a moral e os principios éticos estão submetidos a uma pressão externa que os faz por vezes derreter. 


Publicada por O Farol de Leça

☑ A TRILOGIA DE APU, de Satyajit Ray

Três vezes cinema em estado puro

Em 1955, Satyajit Ray, dá-se a conhecer ao mundo com um trabalho  gigantesco, fazendo juz ao seu imponente porte físico de quase dois metros. Sem qualquer experiência prévia  nas artes cinematográficas e munido apenas de boas ideias, de uma delicada sensibilidade humana e de um apurado sentido estético, atreveu-se a realizar uma das obras mais marcantes do cinema. Com a dose habitual de exagero que inspiram as figuras superlativas, mas genuinamente impressionado, Akira Kurosawa, disse uma vez que alguém que nunca viu um filme de Ray equivalia a  ter vivido sem ter visto a lua e o sol.

Os três filmes da trilogia, que se completou apenas em 1959, com a ajuda de um subsídio estatal e com outros trabalhos de permeio, como o fantástico "A sala de música" de 1958, podem ser vistos individualmente como obras singulares e plenas, mas é no seu conjunto que mais sobressai  a delicadeza do retrato das grandezas, fragilidades e limites do ser humano .
Admirável obra de arte, marcada ainda por uma fotografia prodigiosa de Subrata Mitra e pela música inspiradora de Ravi Shankar.


☑ O LAMENTO DA VEREDA

"Pather Panchali"
India (1955). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Kanu Bannerjee, Karuna Bannerjee e Chunibala Devi.
Drama. 119 minutos. Preto e branco.
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee) 
Sinopse:
No início do século XX, Apu é um rapaz nascido de uma pobre família bramanica, numa aldeia em Bengala na Índia.O pai é um sacerdote e poeta, que não ganha o suficiente para sustentar a família. Durga, a irmã de Apu, rouba fruta dos pomares dos vizinhos para alimentar uma tia idosa, mas este é apenas um dos muitos problemas que a mãe das crianças tem para assegurar a sobrevivência da família.

 
Antes de mais, este é um filme sobre a contingência e a vulnerabilidade da condição humana, reveladas pela perspectiva dos seus extremos etários: Durga é a menina que rouba fruta, para a sua pobre familiar idosa, a quem observa atentamente enquanto esta se alimenta. A velha, por sua vez é a companhia privilegiada da menina, a quem conta histórias de embalar.
Este é também por isso, um filme sobre a prevalência da solidariedade humana sobre os preceitos morais encarados de um ponto de vista formal e abstrato.
Apu, o irmão mais novo, assiste a tudo isto com a inocência e a cumplicidade do seu olhar infantil. Ele estende essa natural curiosidade a outros aspectos da dinâmica do lar e da comunidade, apercebendo-se do trabalho precário e mal pago do pai, do significado das suas ausências e comungando dos seus sonhos e frustrações, reflectidos nas condições de penúria da família. Pather Panchali, é a este respeito, um  retrato de sobrevivência e tenacidade humana no contexto de uma  extrema pobreza.
Com a irmã, Apu aventura-se na descoberta do mundo desconhecido que se abre para além dos limites da comunidade, explorando as florestas e os prados, cortados pelo  caminho do ferro, que abre horizontes ainda mais longínquos do que o olhar permite.
Este é também um notável filme sobre a infância, o crescimento e a descoberta do mundo, que Ray com uma cinematografia bela e irrepreensível partilha connosco.
Quando a irmã morre, Apu depara-se pela primeira vez com a ausência irreversível de alguém que ama. E logo trata de extrair a primeira consequência dessa perda dolorosa, protegendo a memória da irmã, ao fazer desaparecer para sempre o colar que ela roubou e que mantinha escondido. Mais do que a consciência da perda irreparável, este  filme valoriza o papel da memória e da proteção devidas a quem se ama.
A morte solitária da idosa, na sua pungente solidão e comunhão com os elementos é o contraponto natural da morte precoce e inesperada da menina, em imagens que marcam pela sua lógica orgânica.
Ao contemplar e se deter nos ínfimos pormenores dos corpos e nos seus irrepetíveis movimentos e ao  reflectir neles a radical autonomia e inquietante indiferença do meio físico, Ray opera o milagre da revelação do espírito secreto  das pessoas, dos objectos e da natureza. 
Uma serena contemplação de um mundo em  vital  mutação  e uma tocante meditação sobre o crescimento, e a consciência da fragilidade e dos limites da espécie humana. 


☑ O INVENCÍVEL
"Aparajito"
India (1956). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Kamala Adhikari, Lalchand  Banerjee e Kali Bannerjee. 
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee)
Drama. 110 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Apu vive em Benares, onde o seu pai é sacerdote. Após a morte deste, a família move-se para uma aldeia Bengali, onde é ajudada por um tio. Apu esforça-se para entrar na escola local e logo se destaca, ganhando uma bolsa para estudar em Calcutá. Isso implica deixar a sua mãe já doente, sozinha e ainda trabalhar árduamente em Calcutá para ajudar a pagar os estudos.


Este filme inicia-se como a sequência final da viagem iniciada em Pather Panchali, da aldeia bangali até à cidade santa dos Hindús, Benares (Varanasi), nas margens do Ganges, onde o pai de Apu conseguira um emprego como sacerdote.A primeira parte deste filme passa-se, portanto, em Benares e retrata o quotidiano de Apu e da sua família num cortiço da velha cidade, mostrado com a mestria e a simplidade que Ray empresta à sua obra, sobressaindo a bela fotografia realista da velha cidade Hindú e dos seus rituais.Um quotidiano ordinário de uma família pobre mas remediada, até que Apu é de novo confrontado com a perda, agora do pai, o que  precipita  nova mudança para outro ponto da região de Bengala, sob a proteção de um tio. É aqui, nesta segunda fase do filme, que o adolescente Apu começa a lutar por um futuro melhor, esforçando-se nos estudos, que o levariam na terceira parte do filme a Calcutá, onde inicia estudos universitários, em condições particularmente dificeis. É  nesta fase realista, que o filme mergulha nas questões mais marcadamente sociais, como as condições de habitabilidade e de emprego na populosa e pobre Calcutá dos anos 20.  Mas é curiosamente  nesta fase que o filme emerge como um retrato poético e pungente das relações entre mãe e filho, trazendo de volta o melhor do mundo humano revelado em "Pather Panchali".
Uma vez mais, um prodígio de sensibilidade e de admirável simplicidade nos retratos humanos.Uma visão a um tempo realista e poética do sofrimento humano, da saudade e da perda. Um hino à tenacidade dos que perseguem o rasto dos sonhos.
Imagens que jamais se deixam apagar na lenta erosão das nossas memórias.








☑ O MUNDO DE APU

"Apu Sansar"
India (1959). Linguagem: Bengali.
De Satyajit Ray, com Soumitra Chatterjee, Sharmila Tagore e Alok Chakravarty.
Argumento de Satyajit Ray a partir do romance de Bibhutibhushan Bandopadhyay (Banerjee)
Drama. 105 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Apu acabou os estudos, sem o bacharelato e não tem trabalho fixo, vivendo de biscates e acalentando o sonho de ser escritor.Um velho amigo dos estudos convida-o para um casamento na sua terra natal e Apu viaja com ele, acabando por ser ele a substituir o noivo, que se revelou incapaz. Um casamento de circunstância que se viria a revelar uma grande história de amor com um fim trágico, quando Aparna a sua mulher morre no parto, atirando Apu para um enorme sofrimento e desespero.


O fecho desta trilogia, traz-nos Apu na idade adulta, embrenhado na luta pela sobrevivência em condições de sub-empregabilidade e de pobreza. A visita de um velho amigo de estudos, melhor sucedido do que ele, constitui um renovado impulso ao velho sonho de ser escritor, adormecido e subjugado pela lógica  da dura realidade do dia a dia. Este facto e a circunstância de um casamento inesperado, projectam este filme para a dinâmica e imprevisibilidade afectiva das relações inter-pessoais, especialmente amorosas e não se resume à mera implementação de um guião romântico, uma vez que Ray não perde de vista as referências sociais que se impõem pelos olhos adentro e não cai no sentimentalismo lamechas.
Um filme que não destoa da tónica dominante da trilogia, mas na realidade, está um furo abaixo dos dois precedentes.
Não obstante, trata-se de uma  meditação intimista sobre a validade e a adequação dos sonhos à realidade quotidiana. Mais uma vez um retrato pungente e sublime sobre a perda e a hipótese de um recomeço.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

☑ NOUTRO PAÍS, de Sang-Soo Hong

As latitudes do cinema

"In another country"
"Da-reun n-ra-e-seo" (título original)
Coreia do Sul (2012).
De Sang-Soo Hong, com Isabelle Huppert, Jung-Sang Yu, Yu-Mi Jeong e Yeo-Jeong Yoon.
Drama. 89 minutos. Cor.
Sinopse:
Três histórias, dentro de uma história. Na história "tronco", uma jovem coreana, estudante de cinema, para esquecer problemas familiares, entretem-se a escrever  três histórias  interligadas passadas no mesmo "resort" turístico da Coreia do Sul. Nessas histórias, Anne (Isabelle Huppert) representa três turistas francesas diferentes: na primeira  ela é uma realizadora de cinema que visita outro realizador local; na segunda dá corpo a uma mulher casada que tem uma relação extra-conjugal com um realizador asíático; na terceira, ela veste a pele de uma mulher recentemente abandonada pelo marido. A única personagem comum é o salva-vidas...
   

"Noutro País", o título deste filme do produtivo e reputado cineasta coreano Sang-Soo Hong (5º lugar da lista dos melhores filmes de 2012 para o "Cahiers de Cinema"), que conta com a experiente atriz francesa Isabelle Huppert, remete-nos desde logo para uma questão primordial, de saber em que medida, a disparidade das referências geográficas e por inerência culturais e linguísticas,  se manifestam  no processo de concepção e implementação do filme,  e qual é a resultante do equilíbrio entre identidade e alteridade. 
Não é por acaso, que o processo de criação no cinema, é chamado ao barulho no próprio filme, por intermédio de uma estudante de cinema, que movida por problemas concretos, delineou não uma mas três histórias, e com isto, mais do que um mero artifício ficcional, logrou uma introspecção do próprio cinema, ensaiada por tentativas, como se com essa repetição, o espetador fosse avisado por um lado que tudo se resume a  ficção, fruto da inspiração  de uma jovem cinéfila, mas por outro lado,  não invalidando que sejamos instados a uma atenção suplementar e convidados a aprender uma espécie de tabuada cinéfila com resultados inesperados. E assim das três ( ou se quisermos quatro) histórias, que se lêm umas pelas outras, em divertido jogo de transparências, resulta uma única entidade narrativa. 
E também não é por acaso, que a protagonista é sempre uma  francesa  com conexão directa ou indirecta ao cinema, ou não fosse esse fascínio pela outridade e o respeito pelas referências externas do seu cinema,  nas infinitas possibilidades por ele geradas  de encontros e cruzamentos de afectos, uma marca da obra de Hong, materializando neste "Noutro país" o que em  linguagem futebolística se intitula "segunda mão em casa"  , do seu filme "Noite e dia" de 2008, retrato de uma "visita" de coreanos a Paris.
As histórias (ou a história) resumem-se à procura de uma referência básica e um farol é um  símbolo óbvio  dessa orientação e dessa luz, que se revela na prática muito difícil de encontrar, na babel cultural e linguística que o filme expõe.
Tal como as setas na estrada fazem hesitar a protagonista, sobre a direção a seguir, este filme causa-nos o mesmo senso de  insegurança e desorientação. Nunca sabemos quando irá chover e se devemos levar ou não o guarda chuva. Nunca teremos a certeza do que dizem os estranhos.
De certa forma, o filme torna-se  refém do seu esquematismo e a extrema concisão da narrativa não permite que passem para nós  todas as nuances dos encontros e desencontros afectivos e das necessidades de reorientação e cicatrização emocional que as suas personagens reivindicam.
E Hong de forma assaz curiosa faz de um divertido salva-vidas com problemas de comunicação, a personagem comum de histórias de encontros e desencontros, de pausas e recomeços que se sobrepõem mais do que se cruzam. Por ele passa o caminho do farol. Ou não...

domingo, 7 de julho de 2013

☑ O ÚLTIMO ANO EM MARIENBAD, de Alain Resnais

Racionalizar é entrar num jogo que se perde sempre ?

"L'année dernière a Marienbad"
França (1961).
De Alain resnais, com Delphine Seyrig, Giorgio Albertazzi e Sacha Pitoeff .
Drama. Mistério. Romance. 94 minutos. Preto e branco.
Argumento: Alain Robbe-Grillet. Fotografia: Sacha Vierny. Música: Francis Seyrig.
Sinopse:
Num hotel clássico e sumptuoso, um estranho (X) (Giorgio Albertazzi) tenta convencer uma mulher casada (A) (Delphine Seyrig), de que eles tiveram um affair nesse mesmo local (ou teria sido noutro sítio?), um ano antes, instando-a a lembrar-se desse acontecimento que ela repetidamente ignora e apelando para que ela deixe o marido/amante (M) (Sasha Pitoeff) e fique com ele.

 

Eis o candidato mais plausível ao filme mais críptico de sempre. Um filme como nenhum outro, nem mesmo considerando o universo muito particular de Alain Resnais, em especial, o filme que o precedeu "Hiroshima, mon amour". Talvez seja demasiado drástico ir pelo caminho aconselhado pelo próprio Alain Resnais quando avisou que este filme não é para perceber, mas sim apreciar. É evidente que tudo é suscetível de pelo menos uma tentativa de análise e para além da primordial experiência fílmica do domínio sensorial e por isso inteiramente subjectiva, há sempre inquietações de natureza cognitiva, filosófica ou ética, que se  imiscuem no território  das emoções. Mesmo assim, não nos iludamos com as racionalizações, porque arriscamo-nos a mimetizar o ridículo das figuras que neste filme se convencem que podem ganhar o jogo contra o adversário invencível, o senhor M.
As análises que por aí pululam desde o ano do seu lançamento, das mais profundas às mais estapafúrdias, reflectem a ausência de um terreno fime onde assentem  as ideias.
Há quem fale no novo romance francês a propósito de  Alain Robbe-Grillet e ache necessário ler o livro deste, "o ciúme", de onde a estrutura do triangulo amoroso nos moldes do filme seria  decalcada. Mas isto é manifestamente exorbitar o essencial da experiência cinéfila, que se resume ao filme em concreto, que em si mesmo deverá conter  tudo o que importa ao espectador. 
O próprio Alain Resnais, referiu que apenas sentiu o filme como seu, depois de alguns "takes", não lhe dizendo nada de especial o argumento original.
Outra formulação assegura que o filme  descreve a recriação do mito de Orfeu, tudo se passando no submundo dos mortos onde  Eurídice, deveria ser resgatada pelo seu amado. De facto, todos os personagens do filme, desde os principais aos figurantes reagem como se estivessem em estado de hipnose e o argumento anda à volta de uma ideia de resgate amoroso. A música algo fúnebre consubstanciaria uma ideia de pós-morte, o mesmo se passando com a miríade de corredores sem fim num estilo barroco, que simularia na perfeição  o  Purgatório. É uma leitura com tanta lógica como muitas outras,   mas o filme não se deixa circunscrever em ideias feitas e o nosso Orfeu  fica-se pela lembrança vaga com o Deus da mitologia Grega, que como é sabido acabou por ser vítima da ansiedade e assim perdeu a sua amada para sempre, enquanto o Sr. X do nosso filme, nunca teve certeza absoluta de nada, aqui e ali revelando mesmo sinais de Alzheimer, tal como a Sra A e no fundo nunca foi tão longe, a não ser no trambolhão, decerto mortal, que desajeitadamente teve no jardim.
A propósito de Alzheimer e da atmosfera de hipnose que se respira no filme, talvez o grande tema do filme seja mesmo a memória tão labiríntica e volátil, como os corredores infindáveis e intrincados do hotel e os vestidos da protagonista. Falamos de uma memória de experiências  limite, ligadas nomeadamente  a uma relação amorosa complexa, tal qual a vivida pelos vértices do triangulo sentimental do filme. Mas também, ousamos pensar na  memória da própria matéria e experiência fílmicas que estão permanentemente em causa, como se fosse imperioso repetir-se as frases, as imagens e os jogos de espelhos e se estivessemos condenados a duvidar de tudo o que já vimos, neste e noutros filmes. O outro lado da magia do cinema...e da vida, porque o cinema nasce da vida e dos seus problemas.
E o prazer de ver cinema, não terá sido subalternizado neste filme aparentemente tão codificado e hermético ?  Não será ele um produto pretensioso, incompreensivel e falho de humor, para consumo de algumas elites cultural e intelectualmente mais dotadas, como defendem os seus detractores ?
É evidente que se alguém partir para a visualização deste filme com fins de entretenimento, sem  estar ciente que ele é antes de mais uma aventura e um exercício espíritual, vai achar o filme uma verdadeira provação e ficar tão desorientado como os seus personagens e figurantes.

sábado, 6 de julho de 2013

☑☑ PARANÓIA, de D.J. Caruso

Janelas há muitas !...

"Disturbia"
EUA (2007).
De D.J. Caruso, com Shia LaBeouf, Sarah Roemer, Carrie-Anne Moss, David Morse  e Aaron Yoo.
Drama. Thriller. 105 minutos. Cor.
Sinopse:
Após a morte do seu pai num acidente de carro, Kale Brecht apresenta alterações de comportamento que o levam a agredir um professor e em consequência é sujeito a prisão domiciliária. Em casa, passa o seu tempo a espiar os vizinhos, como a nova vizinha do lado, a escultural Ashley, não descurando Mr. Turner, de quem  descobriu comportamentos estranhos,  convencendo-se então tratar-se  de um serial killer...



É possivel ver um mau filme, duas vezes ? Posso jurar que sim !...
A primeira vez eu sofria de um tipo de tédio que pedia um produto tipo "Janela indiscreta"", mas mais contemporâneo. Na segunda vez, a harmonia do lar, completou o milagre...
Este filme é de facto uma versão "teenager" de "Janela indiscreta", o excelente clássico de Hitchcock. E por isso, o estúdio em causa, pertencente a Steven Spielberg foi processado, mas teve mais juízo que sorte, porque foi absolvido enquanto os proveitos do "saque"  ficaram muito distantes das expectativas...
O filme é mau, qualquer que seja o ângulo de visão, sem ou com binóculos. Clichés sobre clichés, zero de arrojo e originalidade. E era fácil, resultar num produto tragável, bastaria mudar a perspectiva e se ter explorado uma paranóia a sério ou com mira desajustada e em vez do rapaz descobrir um "serial killer", ele ter dado a conhecer ao mundo, uma outra realidade distinta e inesperada. E que tal um diretor de efeitos especiais ou um duplo  em treino doméstico,  vítima da falta de educação e paranóia do jovem vizinho?...
Ousado seria discutir a privacidade e os seus limites face à coscuvilhice e à paranóia de quem se julga moralmente superior. Ou dito de outra forma: ousado seria expor  a contradição essencial do Cinema como guardião indevido das virtudes do grupo e máquina invasora e manipuladora por excelência de territórios íntimos e pessoais.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

☑ O TERCEIRO HOMEM, de Carol Reed

Um clássico sempre surpreendente

"The third man"
GB (1949).
De Carol Reed, com Joseph Cotten, Alida Valli, Trevor Howard e Orson Welles.
Film-Noir. Mistério. Thriler. 104 minutos. Preto e branco.
Argumento: Graham Greene
Fotografia: Robert Krasker. Música: Anton Karas.
Sinopse:
Holly Martins (Joseph Cotten) é um escritor americano,  de Westerns de pacotilha, que viaja para  Viena, semi-destruída pela guerra, para encontrar-se com o seu velho amigo Harry Lime (Orson Welles) e mal chega é confrontado com a  morte deste em circunstâncias aparentemente acidentais.No entanto, o relato contraditório das testemunhas e da polícia, levam-no a investigar o caso, pelos seus próprios meios.

 
Filme assombroso e intemporal, surgido da estreita colaboração entre os britânicos Carol Reed e Graham Greene, o primeiro aliando o reconhecido talento ficcional à experiência acumulada na secção de documentários de guerra do exército britânico e o segundo para além de um notório e multifacetado romancista e  ocasionalmente argumentista como neste filme, desempenhara funções diplomáticas para o governo britânico.
O filme retrata a visita do americano Holly Martins (Joseph Cotten), um escritor de Westerns baratos, à Viena destruída e dividida do pós-guerra, a convite do seu velho amigo Harry Lime (Orson Welles). Mal aterrou na cidade, foi informado da morte, na véspera, do seu amigo, atropelado por um camião.O que parecia uma história simplesmente trágica, pouco a pouco foi adquirindo contornos de mistério, quando no funeral de Harry, conheceu Maj. Calloway (Trevor Howard), o chefe da polícia  e da sua boca ouviu as  impressões nada abonatórias sobre o carácter de Harry, retratado como um criminoso do pior. Ainda estupefacto, Holly foi  aconselhado perentoriamente, a regressar a casa quanto antes. 
Mistério que foi se adensando com o relato conflituante das circunstâncias da morte de Harry, por parte das testemunhas e  a referência de uma delas  a um misterioso terceiro homem, não documentado na investigação policial.
Para Holly, o retrato pintado de Harry não se coadunava com a imagem positiva da amizade de muitos anos, que nutria por ele e por isso impôs a si próprio, a descoberta da verdade, pelos seus próprios meios. Nessa demanda, conheceu a amante do seu amigo, Anna (Alida Valli), uma bela atriz Checa, com passaporte falso, para fugir à deportação forçada pelos Russos, ocupantes de um dos quatro sectores da cidade. Anna logo demonstrou um amor incondicional a Harry, indiferente à imagem que dele circulava e isso não impediu o imediato enamoramento de Holly por essa mulher, por quem passava a resolução do intrincado mistério da morte do amigo. O filme passa então a ser ambivalente, ligando a procura da verdade sobre a morte de Harry ao resgate e retribuição do amor de Anna, num esquematismo mental muito típico das tramas simplistas e justicialistas dos westerns baratos escritos por Holly.
Carol Reed, com o conhecimento privilegiado que tinha do terreno, recusou a pretensão do produtor, David O. Selznick, de rodar o filme em cenários de estúdio e impôs a sua intenção de filmagens no local.
Reed escolheu uma singular banda sonora em filmes do género, habitualmente servidos por peças clássicas, tendo preferido uma unusual composição de cítara, por Anton Karas, que descobrira por acaso em Viena.
O filme é um tratado de fotografia e vertiginosa experiência cinemática. Abundam os planos inclinados, em momentos chaves da narrativa, nomeadamente nas perseguições na rua e nos tuneis, transmitindo  um senso de desiquilíbrio emocional e desorientação espacio-temporal,  que emana dos protagonistas e se  plasma na tela, embebendo os sentidos dos espectadores. 
Também merece realce, um plano "picado" (over-head), aquando da conversa dos dois amigos na cabine da roda gigante em movimento ascendente, que mostrava no solo figuras humanas progressivamente mais pequenas e que  deu  a Harry o mote para o seu célebre discurso de  justificação, envolvendo a oposição entre a criatividade da Itália de Da Vinci, malgrado o reinado dos Bórgias e o cinzentismo Suiço, que segundo ele, apenas gerara o relógio de Cuco. Este discurso, foi segundo Greene, totalmente criado por Orson Welles !  O consequente resultado cinemático, para além da experiência de perigo iminente, ilustrou eloquentemente o afastamento dos dois amigos e a perda das referências humanas de Harry. 
O uso de grandes planos com distorção angular, aplicado a figuras humanas e a locais, conferiu à narrativa, contornos fantasmagóricos de fundo expressionista, exemplificados nas imagens da cidade em ruínas e dos seus habitantes como na cena nocturna do homem com o balão, que projecta sombras medonhas, prefigurando um monstro escondido algures.
A famosa cena da perseguição nos tuneis, com a alternância de "close-ups" do rosto desesperado de Harry e dos grandes planos, com as sombras projectadas nas  paredes, culminando na magnífica imagem das mãos do homem em fuga projectando-se desesperadamente para o exterior da sarjeta bloqueada, é um dos mais notáveis momentos da história do Cinema.
A cena final é belíssima e ilustra a impossibilidade do amor nos termos simplistas idealizados por Holly e a constatação por parte do escritor que os seus Westerns com finais felizes, não têm correspondência real, quando os heróis  são outros...
Reed contrariou mesmo o final feliz projectado por Greene,  e preferiu, num certo sentido, um final mais à Casablanca...