Elia Kazan (1909-2003), fica para a história como um dos grandes realizadores americanos, mas na realidade o seu nome de batismo, Elias Kazancioglou, faz dele antes de mais, um digno herdeiro da tradição europeia, ele que foi dado à luz em Istambul, filho de pais gregos. E se a sua matriz artística americana é inquestionável, a sua filiação europeia também se vislumbra, de forma mais evidente em "Há lodo no cais", numa estrutura de escrita e realização, que nada fica a dever ao melhor neo-realismo italiano. Paralelamente ao cinema, Elia dirigiu peças na Broadway, como "Um eléctrico chamado desejo" (1947-1948) e foi sobretudo por essa razão que um par de anos mais tarde, em 1950, a Warner o contratou para realizar a versão cinematográfica desta peça de Tennessee Williams, com o mesmo elenco da obra teatral, apenas com a substituição de Jessica Tandy pela estrela Vivien Leigh, para dar o necessário lustro e retorno financeiro ao filme.
Realizador carismático e talentoso, fica definitivamente ligado a um dos episódios mais negros da história americana do século XX, o Macarthismo e a sua famigerada "caça às bruxas", tendo acedido a ser testemunha e supostamente delator de colegas, à sinistra comissão de actividades anti-americanas (HUAC), episódio que lhe serviu de inspiração e expiação no seu filme de 1954, "Há lodo no cais".
Incontornável referência cinéfila, Elia Kazan foi um dos proponentes do chamado "método de abordagem na representação", desenvolvido pelo russo Konstantin Stanislavski e cultivado entre outros por Lee Strasberg, que relevava do papel da memória emocional que os atores procuravam internalizar pelo treino e desta forma encarnando mais fidedignamente as vivências das personagens. Método seguido, de resto, no "Actor's Studio", onde Marlon Brando, fez a sua formação de ator.
Pelo carácter abrangente e excelência artística da sua obra, Kazan merece que se regresse ao seu universo em futuras viagens pela memória do cinema. Fica prometido e registado.
Pelo carácter abrangente e excelência artística da sua obra, Kazan merece que se regresse ao seu universo em futuras viagens pela memória do cinema. Fica prometido e registado.
☑ UM ELÉCTRICO CHAMADO DESEJO (1951)
"A Streetcar named desire" - título original em inglês.
"Um eléctrico chamado desejo" (Portugal) e "A rua do pecado" (Brasil).
Ano: 1951. Origem: EUA. Linguagem: inglês.
Realização: Elia Kazan. Produção: Charles K. Feldman.
Argumento: Oscar Saul, adaptação da peça homónima de Tennessee Williams (1947).
Com: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, e Karl Malden.
Cinematografia: Harry Stradling . Música: Alex North.
Género: Drama. Duração: 122 minutos. Preto e branco.
Sinopse
A aristocrata sulista, Blanche Dubois, viaja para New Orleans para procurar acolhimento junto da sua irmã Stella, que vive num nada aristocrático cortiço, com Stanley, um brutamontes, pouco dado a gentilezas e à etiqueta.
Este é um filme essencialmente de representação, que deriva da sua raíz teatral, na famosa peça homónima de Tennessee Williams. Antes de gerar o filme, a escrita brilhante de Williams plasmou-se de forma eloquente numa peça de sucesso na Broadway, corriam os anos de 1947 e 1948, tendo Elia como encenador e o mesmo "cast", à excepção do papel de Blanche, que na peça foi bem defendido por Jessica Tander, mas o filme, pedia uma estrela que enchesse a tela e os cofres da Warner e Vivien Leigh, a galardoada diva de "E tudo o vento levou" (1940) , que aliás já representara o mesmo papel na peça levada a cabo em Londres, assentava que nem uma luva no perfil exigido.
Já impressiona, que no início de 1950, em plena vigência do código Hays, da autocensura dos estúdios americanos, o simples facto de adaptar a peça de Williams, que desde o título até à última linha, exala o desejo mais que insinuado, que se desprende da pele e dos olhares, e se reacende nas falas e nos contactos dos corpos transpirados dos protagonistas. No cenário acanhado e claustrofóbico de um modesto apartamento, de uma cidade quente e húmida, a personalidade primária e explosiva de Stanley choca inevitavelmente com a aparente fragilidade de flor de estufa de Blanche, sob o olhar permissivo e conciliador de Stela, que não abdica no entanto de controlar o seu território. O termómetro emocional do filme acompanha este duelo íntimo, não estancando a energia erógena que se lhe associa, a pedir repetidos banhos à recém-chegada Blanche e causando pruridos à epiderme sensível dos censores de serviço.
E qual o maior elogio para o filme de Kazan, que não abdicando de ser fiel ao espírito e ao clima da escrita, chocava corajosamente de frente com a brigada censória, do primeiro ao último plano ?
Na realidade, o filme original sofreu alguns cortes que tentaram afastar o "pecado" da vista e dos ouvidos dos espectadores, durante alguns anos, e que inclusive levaram a alterar o final, para uma putativa punição redentora do pecador, quando na peça de Williams, a malandrice sobrevivia no último olhar de Stela, apesar dos maus tratos que o bruto Stanley lhe infligia. Mas em 1993, o filme integral de Kazan, excluindo o final alterado que persistiu, foi reposto na completa magnificência do seu restauro, para gaudio dos cinéfilos.
Para além da soberba representação da qual resultam os principais louros e que foram premiadas com as estatuetas da ordem para Vivien Leigh, Kim Hunter e Karl Malden, só perdendo Marlon Brando para Humphrey Bogart em " A rainha Africana" (1951), de John Huston, há que relevar a excelente adaptação, a sublime direção artística e de atores e a banda sonora a preceito.
Brando está efervescente no papel de um australopiteco metrossexual dos anos 50 e mostra um flagrante contraste com o estilo de representação maneirista que fazia escola à época e que deriva da sua aprendizagem no "Actor's Studio". A Blanche de Vivien Leigh está maravilhosamente composta, mas com a sua pose e maneiras sulistas, é inevitável que a espaços, se reconheça uma Scarlett O'Hara, caída (ainda mais !) em desgraça e sexualmente irrealizada. Stela, a irmã parece ser a princípio uma espécie de consciência moral, mas vistas bem as coisas, nem por isso, pois privilegia os benefícios da carne em relação aos do espírito. Bem que nós a topamos logo, na cena em que desce as escadas, com aquele olhar glutão para a camisa rasgada de Stanley.
Brando está efervescente no papel de um australopiteco metrossexual dos anos 50 e mostra um flagrante contraste com o estilo de representação maneirista que fazia escola à época e que deriva da sua aprendizagem no "Actor's Studio". A Blanche de Vivien Leigh está maravilhosamente composta, mas com a sua pose e maneiras sulistas, é inevitável que a espaços, se reconheça uma Scarlett O'Hara, caída (ainda mais !) em desgraça e sexualmente irrealizada. Stela, a irmã parece ser a princípio uma espécie de consciência moral, mas vistas bem as coisas, nem por isso, pois privilegia os benefícios da carne em relação aos do espírito. Bem que nós a topamos logo, na cena em que desce as escadas, com aquele olhar glutão para a camisa rasgada de Stanley.
Mitch, bem agarrado por Karl Malden, é um gentleman e um idealista, que na hora da verdade é tão pragmático e convencional como o comum dos mortais.
A fotografia só poderia ser mesmo a preto e branco, como bem lembrou Roger Ebert, para quem a cor mataria o filme, com excesso de realismo nos personagens, quando o que importa para eles e para nós, são as tonalidades de cinzento e as sombras projetadas, nos seus próprios sonhos e necessidades.
☑ HÁ LODO NO CAIS (1954)
"On the waterfront" - tÍtulo original em inglês.
"Há lodo no cais" (Portugal) e " Sindicato de ladrões" (Brasil).
Ano: 1954. Origem: EUA . Linguagem : inglês.
Realização: Elia Kazan.
Argumento: Budd Schulberg.
Com: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger e Eva Marie Saint.
Produção: Sam Spiegel. Cinematografia: Boris Kaufman. Música: Leonard Bernstein. Género: drama. Duração: 108 minutos. Preto e branco.
Sinopse
Terry Malloy (Marlon Brando) é um ex - boxeur, tornado há longo tempo um estivador dos portos de Nova Iorque, na década de 50. Através da influência do seu irmão Charlie (Rod Steiger), braço direito do mafioso chefe do sindicato, Johnny Friendly (Lee J. Cobb), ele é um protegido do sistema. Até que ao assistir ao assassínio de um homem que pretendia testemunhar na justiça contra os sindicalistas mafiosos, ele começa a duvidar da lealdade que deve a esses homens e do voto de silêncio a que está obrigado. Ao conhecer Edie Coyle( Eva Marie Saint) a irmã do homem assassinado com quem se identifica romanticamente, mais reforça essa consciência, sendo ainda encorajado para tal pelo padre da cidade (Karl Malden), um defensor da justiça e dos direitos dos estivadores.
A coincidência deste filme ter sido rodado após a célebre inquirição de Elia Kazan pela comissão de actividades anti-americanas, onde o realizador teria supostamente testemunhado contra colegas seus, levou muita gente a vê-lo como uma justificação e uma tentativa de expiação de uma culpa, ele que fora um comunista na década de 30.
O argumento de Budd Schulberg, abordando temas de forte conotação social, explorando o mundo do trabalho dos estivadores e as injustiças perpetradas pelos sindicatos, organizados como autênticos cartéis do crime, era de certa forma uma novidade nos tempos do cinema americano do pós-guerra, em que fazia escola um certo cinema, de cariz mais leve, idealista e romântico no conteúdo e maneirista e descomprometido na forma. Este facto, aliado a uma singular fotografia a preto e branco, de locações e "takes" predominantemente externos, em detrimento do vigente artificialismo dos estúdios, fazendo realce do contexto social, ou seja das condições em que vivem, trabalham e amam os personagens, apelando em suma a um mais apurado senso de realidade, tornam este filme um perfeito sucedâneo do neorrealismo italiano. A este respeito são elucidativos os planos iniciais, mostrando os trabalhadores em fila, com roupas sujas e rasgadas, num cenário degradado, com um navio em fundo, testemunhando as difíceis condições de trabalho e de vida desta gente, exactamente como num filme neorrealista. Este realismo das imagens constituía algo de novo em Hollywood, mérito que ninguém ousará recusar a Kazan.
Para além de escalpelizar muito bem o contexto social, o filme entra muito acuradamente no clima psicológico das personagens e da sua integração no grupo, importando obviamente as suas vivências pessoais e no caso de Terry Malloy (Marlon Brando), ressaltando de forma pungente o seu passado de quase glória, o seu presente de quase insignificância e o seu futuro quase sem perspectivas, como ele próprio antevê. No entanto é a força da massa humana, que se sobrepõe às especificidades das pessoas individuais, tal como num filme de cunho neorrealista.
"Há lodo no cais", é um filme que fala de injustiças que se suportam e que se calam, comportamentos estes que se justificam pelo medo, pela inércia, pelo comodismo e pelo carreirismo individualista. A certa altura há uma consciência que desperta e que vai crescendo e se propagando. Não só a consciência pessoal, que no caso de Terry Malloy se reveste também de um conflito entre a sua consciência e a sua lealdade ao seu chefe e putativo protetor, ao seu irmão e também aos demais trabalhadores que estão consigo no mesmo barco. Um conflito de certa forma repisando o vivido pelo personagem de "Ladrões de bicicletas" (1948), de Vittorio de Sicca, também ele dividido entre um caminho de honestidade e de corrupção e as consequências que tem que arcar com a escolha. Mas há também uma consciência social que vai germinando, curiosamente ao redor de um padre, defensor dos oprimidos, facto que não será pacífico à luz de muitas leituras, mas nem por isso, deixará de ser legítimo, quando despido da simbologia religiosa, que não é, de modo algum, usada como "leitmotif" da narrativa.
A caracterização das personagens é um dos pontos fortes deste filme. Terry Malloy é mais um anti-herói, com doses inesperadas de cobardia e autocomiseração, muito longe do típico herói de Hollywood. O trabalho de Marlon Brando é verdadeiramente excecional, um marco do realismo no cinema, pela interiorização e partilha das emoções do personagem e do ator, uma característica do método exercitado no "Actor's studio", que lhe valeu um merecido Oscar.
Em suma, um filme notável que congrega muitas coisas boas, desde o realismo do argumento e do brilhantismo artístico de Kazan até ao génio inegável de Marlon Brando. Só o final à Hollywood, demasiado teatral e surpreendentemente idealista, estraga um pouco o quadro geral. Que no entanto, não ofusca o brilho perene desta obra prima.
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