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sábado, 30 de novembro de 2013

ELIA POR ELIA: KAZAN EM SESSÃO DUPLA

Elia Kazan (1909-2003), fica para a história como um dos grandes realizadores americanos, mas na realidade o seu nome de batismo, Elias Kazancioglou, faz dele antes de mais, um digno herdeiro da tradição europeia, ele que foi dado à luz em Istambul, filho de pais gregos. E se a sua matriz artística americana é inquestionável, a sua filiação europeia também se vislumbra, de forma mais evidente em "Há lodo no cais",  numa estrutura de escrita e realização, que nada fica a dever ao melhor neo-realismo italiano. Paralelamente ao cinema, Elia dirigiu peças na Broadway, como "Um eléctrico chamado desejo" (1947-1948) e foi sobretudo por essa razão que um par de anos mais tarde, em 1950, a Warner o contratou para realizar a versão cinematográfica desta peça de Tennessee Williams, com o mesmo elenco da obra teatral, apenas com a substituição de Jessica Tandy pela estrela Vivien Leigh, para dar o necessário lustro e retorno financeiro ao filme.
Realizador carismático e talentoso, fica definitivamente ligado a um dos episódios mais negros da história americana do século XX, o Macarthismo e a sua famigerada "caça às bruxas", tendo  acedido a ser testemunha e supostamente delator de colegas, à sinistra comissão de actividades anti-americanas (HUAC), episódio que lhe serviu de inspiração e expiação no seu filme de 1954, "Há lodo  no cais".
Incontornável referência cinéfila, Elia Kazan foi um dos proponentes do chamado "método de abordagem na representação", desenvolvido pelo russo Konstantin Stanislavski e cultivado entre outros por  Lee Strasberg, que relevava do papel da memória emocional que os atores procuravam internalizar pelo treino e desta forma encarnando mais fidedignamente  as vivências das personagens. Método seguido, de resto, no "Actor's Studio", onde Marlon Brando, fez a sua formação de ator.
Pelo carácter abrangente e excelência artística da sua obra, Kazan merece que se regresse ao seu universo em futuras viagens pela memória do cinema. Fica prometido e registado.
 
UM ELÉCTRICO CHAMADO DESEJO (1951)
 
"A Streetcar named desire" - título original em inglês.
"Um eléctrico chamado desejo" (Portugal) e "A rua do pecado" (Brasil).
Ano: 1951. Origem: EUA. Linguagem: inglês.
Realização: Elia Kazan. Produção: Charles K. Feldman.
Argumento: Oscar Saul, adaptação da peça homónima de Tennessee Williams (1947).
Com: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, e Karl Malden.
Cinematografia: Harry Stradling . Música: Alex North.
Género: Drama. Duração: 122 minutos. Preto e branco.
Sinopse
A aristocrata sulista, Blanche Dubois, viaja para New Orleans para procurar acolhimento junto da sua irmã Stella, que vive num  nada aristocrático cortiço, com Stanley, um brutamontes, pouco dado a  gentilezas e à etiqueta.



Este é um filme essencialmente de representação, que deriva da sua raíz teatral, na famosa peça homónima de Tennessee Williams. Antes de gerar o filme, a escrita brilhante de Williams plasmou-se de forma eloquente numa peça de sucesso na Broadway, corriam os anos de 1947 e 1948, tendo Elia como encenador e o mesmo "cast", à excepção do papel de Blanche, que na peça foi bem defendido por Jessica Tander, mas o filme, pedia uma estrela que enchesse a tela e os cofres da Warner e Vivien Leigh, a galardoada diva de "E tudo o vento levou" (1940) , que aliás já representara o mesmo papel na peça levada a cabo em Londres, assentava que nem uma luva no perfil exigido.
Já impressiona, que no início de 1950, em plena vigência do código Hays, da autocensura dos estúdios americanos, o simples facto de adaptar a peça de Williams, que desde o título até à última linha, exala o  desejo mais que insinuado, que se desprende da pele e dos olhares, e se reacende nas falas e nos contactos dos corpos transpirados  dos protagonistas. No cenário acanhado e claustrofóbico de um modesto apartamento, de uma cidade quente e húmida, a personalidade primária e explosiva de Stanley choca inevitavelmente com a aparente fragilidade de flor de estufa de Blanche, sob o olhar permissivo e conciliador de Stela, que não abdica no entanto de controlar o seu território. O termómetro emocional do filme acompanha este duelo íntimo, não estancando a energia erógena que se lhe associa, a pedir repetidos banhos à recém-chegada Blanche e  causando pruridos à epiderme sensível dos censores de serviço.
E qual o maior elogio para o filme de Kazan, que não abdicando de ser fiel ao espírito e ao clima da escrita, chocava corajosamente de frente com a brigada censória, do primeiro ao último plano ?
Na realidade, o filme original sofreu alguns cortes que tentaram afastar o "pecado" da vista e dos ouvidos dos espectadores, durante alguns anos, e que inclusive levaram a alterar o final, para uma putativa  punição redentora do pecador, quando na peça de Williams, a malandrice sobrevivia no último olhar de Stela, apesar dos maus tratos que o bruto Stanley lhe infligia. Mas em 1993, o filme integral de Kazan, excluindo o final alterado que persistiu, foi reposto na  completa magnificência do seu restauro, para gaudio dos cinéfilos.
Para além da soberba  representação da qual resultam os principais louros e que foram premiadas com as estatuetas da ordem para Vivien Leigh, Kim Hunter e Karl Malden, só perdendo Marlon Brando para Humphrey Bogart em " A rainha Africana" (1951), de John Huston, há que relevar a excelente adaptação, a sublime direção artística e de atores e a banda sonora a preceito.
Brando está efervescente no papel de um australopiteco metrossexual dos anos 50 e mostra um flagrante contraste com o estilo de representação maneirista que fazia escola à época e que deriva da sua aprendizagem no "Actor's Studio". A Blanche de Vivien Leigh está maravilhosamente composta, mas com a sua pose e maneiras sulistas, é inevitável que a espaços, se reconheça uma Scarlett O'Hara, caída (ainda mais !) em desgraça e sexualmente irrealizada. Stela, a irmã parece ser a princípio uma espécie de consciência moral, mas vistas bem as coisas, nem por isso, pois privilegia os benefícios da carne em relação aos do espírito. Bem que nós a topamos logo, na cena em que desce as escadas, com aquele olhar glutão para a camisa rasgada de Stanley.
Mitch, bem agarrado por Karl Malden, é um gentleman e um idealista, que na hora da verdade é tão pragmático e convencional como o comum dos mortais. 
A fotografia só poderia ser mesmo a preto e branco, como bem lembrou Roger Ebert, para quem a cor mataria o filme, com excesso de realismo nos personagens, quando o que importa para eles e para nós, são as tonalidades de cinzento e as sombras projetadas, nos seus próprios sonhos e  necessidades.
 
HÁ LODO NO CAIS (1954)
 
"On the waterfront" - tÍtulo original em inglês.
"Há lodo no cais" (Portugal) e " Sindicato de ladrões" (Brasil).
Ano: 1954. Origem: EUA . Linguagem : inglês.
Realização: Elia Kazan.
Argumento: Budd Schulberg.
Com: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger e Eva Marie Saint.
Produção: Sam Spiegel. Cinematografia: Boris Kaufman. Música: Leonard Bernstein. Género: drama. Duração: 108 minutos. Preto e branco.
Sinopse
Terry Malloy (Marlon Brando) é um ex - boxeur, tornado há longo tempo um estivador dos portos de Nova Iorque, na década de 50. Através da influência do seu irmão Charlie (Rod Steiger), braço direito do mafioso chefe do sindicato, Johnny Friendly (Lee J. Cobb), ele é um protegido do sistema. Até que ao assistir ao assassínio de um homem que pretendia testemunhar na justiça contra os sindicalistas mafiosos, ele começa a duvidar da lealdade que deve a esses homens e do voto de silêncio a que está obrigado.   Ao conhecer Edie Coyle( Eva Marie Saint) a irmã do homem assassinado com quem se identifica romanticamente, mais reforça essa consciência, sendo ainda encorajado para tal pelo padre da cidade (Karl Malden), um defensor da justiça e dos direitos dos estivadores.


A coincidência deste filme ter sido rodado após a célebre inquirição de Elia Kazan pela comissão de actividades anti-americanas, onde o realizador teria supostamente testemunhado contra colegas seus, levou muita gente a vê-lo como uma justificação e uma tentativa de expiação de uma culpa, ele que fora um comunista na década de 30.
O argumento de Budd Schulberg, abordando temas de forte conotação social, explorando o mundo do trabalho dos estivadores e as injustiças perpetradas pelos sindicatos, organizados como autênticos cartéis do crime, era de certa forma uma novidade nos tempos do cinema americano do pós-guerra, em que fazia escola um certo cinema, de cariz mais leve, idealista e romântico no conteúdo e maneirista e descomprometido na forma. Este facto, aliado a  uma singular fotografia a preto e branco, de locações e "takes" predominantemente externos, em detrimento do  vigente artificialismo dos estúdios, fazendo realce do contexto social, ou seja das condições em que vivem, trabalham e amam os personagens, apelando em suma a um mais apurado senso de realidade, tornam este filme um perfeito sucedâneo do neorrealismo italiano. A este respeito são elucidativos os planos iniciais, mostrando os trabalhadores em fila, com roupas sujas e rasgadas, num cenário degradado, com um navio em fundo, testemunhando as difíceis condições de trabalho e de vida desta gente, exactamente como num filme neorrealista. Este realismo das imagens constituía algo de novo em Hollywood, mérito que ninguém ousará recusar a Kazan.
Para além de escalpelizar muito bem o contexto social, o filme entra muito acuradamente no clima psicológico das personagens e da sua integração no grupo, importando obviamente   as suas vivências pessoais e no caso de Terry Malloy (Marlon Brando), ressaltando de forma pungente o seu passado de quase glória, o seu presente de quase insignificância e o seu futuro quase sem perspectivas, como ele próprio antevê. No entanto é a força da massa humana, que se sobrepõe às especificidades das pessoas individuais, tal como num filme de cunho neorrealista.
"Há lodo no cais", é um filme que fala de injustiças que se suportam e que se calam, comportamentos estes que se justificam pelo medo, pela inércia, pelo comodismo e pelo carreirismo individualista. A certa altura há uma consciência que desperta e que vai crescendo e se propagando. Não só a consciência pessoal, que no caso de Terry Malloy se reveste também de um conflito  entre a sua consciência e a sua lealdade ao seu chefe e putativo protetor, ao seu irmão e também aos demais trabalhadores que estão consigo no mesmo barco. Um conflito de certa forma repisando o vivido pelo personagem de "Ladrões de bicicletas" (1948), de Vittorio de Sicca, também ele dividido entre um caminho de honestidade e de corrupção e as consequências que tem que arcar com a escolha. Mas há também uma consciência social que vai germinando, curiosamente ao redor de um padre, defensor dos oprimidos, facto que não será pacífico à luz de muitas leituras, mas nem por isso, deixará de ser legítimo, quando  despido da simbologia religiosa, que não é, de modo algum, usada como "leitmotif" da narrativa.
A caracterização das personagens é um dos pontos fortes deste filme. Terry Malloy é mais um anti-herói, com doses inesperadas de cobardia e autocomiseração, muito longe do típico herói de Hollywood. O trabalho de Marlon Brando é verdadeiramente excecional, um marco do realismo no cinema, pela interiorização e partilha das emoções do personagem e do ator, uma característica do método exercitado no "Actor's studio", que lhe valeu um merecido Oscar.
Em suma,  um filme notável que congrega muitas coisas boas, desde o realismo do argumento e do brilhantismo artístico  de Kazan até ao génio inegável de Marlon Brando. Só o final à Hollywood, demasiado teatral e surpreendentemente idealista, estraga um pouco o quadro geral. Que no entanto, não ofusca o brilho perene desta obra prima. 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

☑ O CEMITÉRIO DE PRAGA, de Umberto Eco

Mentiras e consequências

Título original em italiano: "Il Cimitero di Praga"
Autor: Umberto Eco. Género: Ficção histórica. Suspense erudito.
Ano da edição original: 2010. País: Itália.
Título da edição portuguesa: "O cemitério de Praga"
Ano da edição Portuguesa: 2011. Editora: Gradiva. Tradução: Jorge Vaz de Carvalho.
559 páginas.
Sinopse
"Durante o século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, encontramos uma satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres num esgoto parisiense, um garibaldino que se chamava Ippolito Nievo, desaparecido no mar nas proximidades do Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada alemã, o aumento gradual daquela falsificação conhecida como Os Protocolos dos Sábios Anciãos de Sião, que inspirará a Hitler os campos de extermínio, jesuítas que tramam contra os maçons, maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam os padres com as suas próprias tripas, um Garibaldi artrítico com as pernas tortas, no complexo tabuleiro da unificação italiana, os planos dos serviços secretos piemonteses, franceses, prussianos e russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem os ratos, golpes de punhal, horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que entre os vapores do absinto planeiam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários, testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras.   Óptimo material para um romance-folhetim de estilo oitocentista, para mais, ilustrado com os "feuilletons" daquela época. Há aqui do que contentar o pior dos leitores. Salvo um pormenor. Excepto o protagonista, todos os outros personagens deste romance existiram realmente e fizeram aquilo que fizeram. E até o protagonista faz coisas que foram verdadeiramente feitas, salvo que faz muitas que provavelmente tiveram autores diferentes. Mas quem sabe, quando alguém se movimenta entre serviços secretos, agentes duplos, oficiais traidores e eclesiásticos pecadores, tudo pode acontecer. Até que o único personagem inventado desta história seja o mais verdadeiro de todos, e se assemelhe muitíssimo aos outros que estão ainda entre nós."
(FNAC)


Continuamos na senda das fraudes, das farsas e das falsificações, mergulhando na sua génese e extraindo as suas consequências, agora no campo literário e pela pena de um dos últimos escritores realmente eruditos, Umberto Eco, que continua sábio, produtivo e actual, nos seus mais de 80 anos. 
Uma obra de ficção, mas que se revela certeira em termos racionais, desvendando muito sobre a necessidade bem humana de gerar inimigos, de os alimentar e perpetuar, com fins que vão dos comezinhos jogos de interesses aos delírios mais incompreensíveis.
A personagem central deste livro é um ser egocêntrico e maquiavélico, misantropo e misógino, que  inspira repulsa imediata no leitor, tornando o livro não muito agradável de se ler, até porque lhe cabe grande parte da narração sob a forma de um diário, que partilha com o alter ego da sua complexa personalidade. No entanto, este carácter multiforme da personagem, que assume nomes e feições diversas, ora sendo o falsário tabelião Simonini, ora se travestindo de  respeitável capitão Garibaldino, ora ainda assumindo o hábito eclesiástico inerente ao abade Dalla Piccolla, torna-o divertido não só na sua descrição física como no enunciar do seu mundo mental, que reúne todos os preconceitos sobre um inimigo que julga conhecer. E isto desenrola-se num particular contexto histórico e geográfico - a Europa do século XIX - em que as ideias se impõem mais pela oposição que pela afirmação, vivendo-se definitivamente em plena constelação de todos os antis, do anti-semitismo, do anti-clericalismo, do anti-capitalismo e do anti-socialismo.  
A narrativa  não é  linear nem cronológica, recorrendo a flashbacks e elipses e entrecruzando elementos de vários tempos psicológicos e históricos díspares.
Interessantes são os episódios associados às guerras da unificação italiana e num outro contexto à comuna de Paris. E sobretudo como esses incidentes históricos são moldados e influenciam as ideias vigentes que incluem ideais monárquicos mais ligados ao catolicismo, em  oposição às hostes republicanas de cunho mais socialista e com derivações maçónicas.
Como o semitismo  e o anti-semitismo se tornam, apesar de tudo, o grande polo de discussão deste livro é que é o grande mistério - o tal suspense erudito, de que Eco é o expoente máximo -  que mantém viva a leitura até ao fim.

Excelente entrevista a Umberto Eco, sobre este livro e outros temas ( Link - Revista Época - Globo.com).

domingo, 24 de novembro de 2013

☑ F DE FRAUDE, de Orson Welles

F FOR  FUCKING GENIUS !...

"Vérités et mensonges" - Título original.
"F for Fake" - Título em inglês.
"F de fraude" / "Verdades e mentiras" - Título em Portugal/Brasil.  
Origem: França, Irão, RFA. Ano:1973.
Linguagem: Inglês, Francês e Espanhol.
De: Orson Welles (Realização e argumento).
Com: Orson Welles, Oja Kodar, Joseph Cotten, Helmyr de Hory, Clifford Irving, Laurence Harvey, François Reichenbach.
Cinematografia: François Reichenbach.
Música: Michel Legrand.
Género: Falso documentário/Ensaio cinéfilo. 89 minutos. Cor.

Sinopse
Um documentário/ensaio, sobre fraude e falsificação.





"F de farsantes",  em português,  exprimiria melhor as ideias que perpassam por este filme e para todos os efeitos é o meu título. A fraude e os seus autores, nem sempre se revestem da necessária encenação e em regra, trocam as imprescindíveis popularidade e assinatura, que os farsantes gostam de ostentar como cartão de visita, por um mais conveniente anonimato. Um simples indivíduo que cometa fraude é mais um criminoso que acaba quase sempre por ir parar atrás das grades, enquanto um farsante, a sua fraude ou é completamente irrelevante (a maioria), ou é uma verdadeira obra de arte e ele próprio um génio, a quem espera um panteão à altura da sua glória.
Vi este filme, movido por um daqueles "tags" ou "links" que fazem a delícia  (e não raras vezes o desespero) de qualquer intercinenauta (direito de autor a partir deste momento! ) que se preze  e que procure o máximo de informação, neste caso, tendo como ponto de partida o filme de Abbas Kiorastami, "Cópia Certificada", revisto neste blog recentemente, com quem este filme de Welles foi logo aparentado por rigorosas, frias e  impersonalizadas bases de dados. Se se recordam desse filme do celebrado iraniano, rodado em Itália, a grande premissa era que "esqueçam o original e arranjem uma boa cópia" e mais: a cópia era enaltecida porque possibilitaria uma melhor compreensão da obra original.
Aliás, o próprio Pablo Picasso, teria dito, a certa altura, algo do género: "a arte é uma mentira, que nos possibilita conhecer a verdade".
Este filme não é um  documentário, porque faz questão de misturar o real com a ficção, constituindo mais um ensaio, apresentado por meios audiovisuais, do que outra coisa. O próprio realizador e narrador, para além de se apresentar como um refinado farsante, ostentando a necessária prova e a pose provocadora e manipuladora - aquela postura no estúdio, sugerindo as possíveis diatribes com as fitas, não engana -  resolve brincar com ideias à priori sedimentadas e indiscutíveis, para não dizer tabus, abrindo e expondo sibilinamente ao debate, os conceitos  de arte, autenticidade, especialista e falsificação.
Eis-nos, portanto, guiados pelo génio indiscutível deste corpulento americano, que aos 26 anos nos brindou com uma obra perene, a sua  fulgurante película de estreia, " Citizen Kane"  ("O mundo a seus pés") (1941) e que anos antes, dera já um ar da sua graça, de brincalhão e farsolas, com  a  "Guerra dos mundos" (1938), essa farsa radiofónica demolidora sobre os nossos medos de contornos apocaliticos. O enorme crédito que Orson ganhou com essas obras, possibilitou-o a dizer e a fazer literalmente tudo, sem que se desfizesse a habitual reverência  do mundo cinéfilo. Orson é definitivamente especial, um caso à parte de talento e carisma, no cinema e na vida. E para que não restassem dúvidas, ela a bela Croata Oja lá estava como selo de qualidade, pois em terra de cegos quem tem (tinha) uma Oja é (era) rei !
Mas voltando ao filme e à sua discussão principal, sobre o original e a cópia, a mentira e os seus frutos, a fraude e os seus dividendos (repare-se: nunca o crime e o castigo, porque Dostoiévski não entra neste filme e aqui reina a bonomia e o humor, politicamente corretos), Orson começa por mostrar os seus dotes de prestidigitador, que logo nos centra no essencial: embora este filme suscite uma discussão séria, não passa de um filme e portanto de uma ilusão. Porque, como nos tratou logo de avisar o seu realizador: "Um ator é basicamente um farsante" e " quase todos os filmes são sobre alguma forma de mentira". Portanto não nos iludamos quanto ao carácter documental da coisa, até porque para lançar mais confusão, o farsante Orson avisou que o filme seria honesto e verdadeiro até quase ao final, onde entraria então um pouco de ficção...Bem, em Orson, tudo é para levar a sério, mesmo a brincadeira...
Em suma, estamos perante um filme que nos faz sorrir e pensar. É fascinante conhecer um pouco os farsantes deste filme,  desde o impagável Elmyr de Hory até ao capcioso Clifford Irving, este curiosamente "apanhado" na sua falsa  autobiografia de Howard Hughes, uns meses antes da rodagem deste filme - que na verdade foi mais um aproveitamento de alguma "footage" adquirida pelo cimematografista François Reichenbach, por outras razões, como a maroteira dos apanhados no "passeio" da escultural à época, Oja Kodar - e que se revelou portanto providencial e inesquecível: um farsante (Elmyr de Hory) visto por outro (Clifford Irving) e vice-versa !
Já na parte final, no préviamente avisado conteúdo de pura  fantasia, Picasso tem uma "aparição", na forma de um aparente "affair" artístico com Oja, da qual resultariam 22 quadros de excelsa arte erótica, pintados pelo "pincel viril" do espanhol e posteriormente "sorripiados" por Oja e copiados "genialmente" pelo avó da dita cuja, um obscuro hungaro às portas da morte e suscitando mais umas quantas inquietações sobre a arte ela própria, na deliciosa discussão, entre o artista e o seu falsário, na encenação protagonizada por Orson e Oja. Teria dito  o moribundo húngaro, ser não um , mas múltiplos artistas, de Rembrandt  a Picasso, habitando como um espectro as paredes de múltiplos museus por esse mundo fora e que agora ao morrer precisava de acreditar que a arte era real. E instado por Pablo a desvendar o destino dos quadros originais roubados por Oja do seu espólio, teria dito que foram queimados !
Exatamente como Elmyr, o farsante mais notório, mostra repetidamente no filme, ao queimar as suas "originais" cópias,  de uma forma um tanto ou quanto teatral, ou não estivéssemos perante um  verdadeiro mestre da farsa...

sábado, 16 de novembro de 2013

TRILOGIA DA SOLIDÃO, de Roberto Rossellini

Roberto Rossellini (1906-1977), foi um dos principais artífices do movimento  neorrealista 
no cinema italiano, que atingiu a sua máxima expressão com a trilogia da guerra - "Roma cidade aberta"  (1945),  "Alemanha ano zero" (1948) e "Libertação (Paisà)" (1948). A partir de 1950, inicia uma nova fase da sua carreira, para o bem e para o mal,  associada a Ingrid Bergman, a refulgente estrela de "Casablanca" e um dos adorados ícones de Hollywood, com quem se vem a envolver, contra a moral e os bons costumes vigentes e perante a  puritana reprovação da América. Com os três filmes, que se englobam hoje na chamada trilogia da solidão (Trilogia della solitude, no original), o realizador distancia-se um pouco da análise social, em direção a um cinema de cariz eminentemente psicológico, centrado na solidão do indivíduo e na sua dimensão espiritual. Se  antes predominava o vector coletivo e a lógica da História preenchia o lugar vazio de um Deus  dispensável, agora sobressai a especificidade e a singularidade da pessoa humana, com os seus problemas existenciais e a sua abertura à transcendência e ao divino, em tensão dialética com um meio físico e social, rígido e hermético, inclusive nas  manifestações da sua imanente  religiosidade.
Os três filmes da trilogia ("Stromboli", "Europa 51" e "Viagem em Itália"), não têm só Rossellini e Ingrid Bergman em comum. Em todos eles, o argumento gira em torno de uma mulher estrangeira, casada, que se torna desencantada com o seu estilo de vida e decide empreender instintiva e corajosamente a mudança dos pressupostos da sua existência pessoal.
(Se isto não é falar de Ingrid e de Roberto, bem que parece...)
Já não é tanto a reflexão sobre a mudança num grupo ou sociedade, que interessa ao realizador, mas agora o fulcro é colocado bem no âmago da existência humana e na sua aspiração de realização e felicidade pessoal.
Esta evolução do cinema de Rossellini não foi bem vista pelos tradicionalistas do neorrealismo, que não apreciaram a deriva temática nem algumas inovações formais, como a subalternização do plano-sequência, tão caro ao realizador, face à montagem alternada, mais ao gosto das convenções de Hollywood. Não obstante as críticas, esta fase da carreira de Rossellini, que sublinhe-se marca uma etapa e não a negação da sua arte e carismas primordiais, constitui em muitos aspetos um salto decisivo na história do cinema, na medida que se aventura em espaços pouco explorados, deixando luminosos rastros para o futuro, não só  a nível doméstico - Antonioni, que o diga -  como noutras latitudes, sendo fonte de inspiração e um inestimável legado para a "Nova vaga" francesa, que lhe deve muito do seu estilo e substância. 

☑ STROMBOLI

"Stromboli" ou "Stromboli, terra di Dio" - Título original em italiano.
"Stromboli" - nome internacional, incluindo em Portugal.
Origem: Itália e EUA. Linguagem: Italiano & inglês.
Ano: 1950.
Realização e Argumento: Roberto Rossellini.
Com: Ingrid Bergman, Mario Vitale, Renzo Cesana e Mario Sponzo.
Cinematografia: Otello Martelli. Música: Renzo Rossellini.
Género: Drama/Melodrama.
Duração: 81 minutos (Versão inglesa, RKO's cut), 95 minutos (versão italiana), 106 minutos (Versão inglesa, Criterion Collection). Preto e branco.

Sinopse
Em Itália, no fim da II guerra mundial,  Karen, uma mulher Lituana, casa com o pescador Antonio, para escapar a um campo de refugiados.  Mas a ilha Siciliana de Stromboli, terra de Antonio, não é o que Karen esperava e ela vê-se confrontada com uma vida tão dura como a do campo de refugiados, numa terra pobre e hostil, ameaçada permanentemente por um vulcão em actividade.
                                                                                                                    


Apesar de trilhar outros territórios, de índole mais psicológica e espiritual, este filme deixa  visível, ainda que com laivos de algum revisionismo, a marca de água do neorrealismo, através do retrato cru e desencantado de uma comunidade de pescadores numa  inesquecível luta pela sobrevivência. A nuance é que eles aceitam  essa luta, como um uma fatalidade e um destino e não há aqui a consciência de uma injustiça, por imposição de forças sociais opressivas, mas em vez disso, o seu adversário é um ambiente físico adverso, exemplificado por uma desoladora ilha que guarda nas suas entranhas um vulcão ativo, a personificação do próprio inferno na terra. Quando esta comunidade  fechada e governada por um código muito rígido de valores, acolhe alguém estranho como a personagem Karen, espera dela a assimilação a esse estilo de vida, sob pena de exclusão ou de marginalização. Neste sentido a comunidade funciona como força modeladora e opressora, condicionando a liberdade individual.
E Rossellini filma admiravelmente esta tensão entre o "interior" e o "exterior",  "o novo" e o "velho", a "mudança" e a "tradição". O filme faz da  comunidade, uma personagem autónoma, no seu quotidiano vulgar e na sua labuta diária, mostrados com uma mestria inexcedível e um realismo exemplar, como na impressionante cena da pescaria do atum. A cena releva em elucidativos planos, a  incrível força do coletivo, máquina afinada, feita de gente trabalhando e suando em uníssono, como uma alma só, em contraponto ao coração solitário de Karen, que assiste a tudo isto com indisfarçável pasmo e sofrimento. Dir-se-á que Rossellini, propõe aqui uma reflexão sobre o papel da comunidade e da tradição, que na sua lógica aglutinadora e normalizadora, tende  a se sobrepor à pessoa em concreto, nas suas ânsias e projetos singulares de vida. 
Aliás, trata-se de um filme de uma densidade notável, incorporando várias camadas suscetíveis de leituras muito diversificadas. O retrato da personagem de Karen, só por si, na energia e subtileza, emprestadas por uma magnífica Ingrid Bergman, justifica o preço do "bilhete" do filme. De personalidade complexa, que com o evoluir da intriga, se vai descobrindo a si própria e nos revelando a nós expectadores, muitas vezes de forma inesperada. Ela no início, ao casar-se com António,  parece calculista e interesseira, mas depressa a astúcia se revela ingenuidade. Quando reincide na tática da sedução para obter dividendos, como na explícita abordagem ao padre, mais uma vez o tiro lhe sai pela culatra. A comunidade, com  a bênção da autoridade religiosa local, pretende impor-lhe um modelo de extrema parcimónia, subjugação e cinzentismo sofredor, que ela começa por rejeitar, fazendo obras na velha casa, donde retira sem hesitar as fotos de família de António. Com o tempo, sentindo a pressão exterior, dá indícios de alguma resignação, como no momento em que revela a sua gravidez ao marido, mas logo perante a fúria do vulcão, repensa e decide sair daquela ilha que representa para si uma prisão e uma ameaça para  a sua vida e do seu filho em gestação. E no momento da libertação da clausura em sua própria casa é já uma força da natureza e plena de energia telúrica, tal como o vulcão, que decide enfrentar. O vulcão, personagem omnipresente, é mais do que um símbolo ou uma ideia, é algo de terrível e de concreto, que está ali no meio do caminho (da vida, do casamento), um caos de fogo, pedras rolantes e gases irrespiráveis, o único caminho entre dois mundos e duas realidades opostas. 
E não nos digam que não é humano,  perante a iminência de um inferno destes, clamar por Deus, mesmo que  nunca se tenha pretendido pronunciar tal palavra ? O final é assim, a expressão suprema da fragilidade e da impotência humana e não é pelo facto da protagonista ter  invocado  o divino, que torna este filme uma capitulação ou cedência perante qualquer credo religioso. Antes pelo contrário, se alguma coisa  este filme provocador pretende demonstrar é a de que, mesmo quando imerso em aparente solidariedade humana e manifestações de religiosidade comum, é o indivíduo na essência da sua relação  consigo mesmo e na comunhão solitária com o universo, que acaba por prevalecer. 

☑ EUROPA 51
"Europa '51" - Título original e em português.
Origem: Itália. Linguagem: Italiano  (inglês na versão Criterion).
Ano: 1952.
Realização e Argumento: Roberto Rossellini.
Com: Ingrid Bergman, Alexander Knox, Ettore Giannini e Giuletta Masina.
Cinematografia: Aldo Tonti. Música: Renzo Rossellini.
Género: Drama psicológico/Melodrama.
Duração: 113 minutos. Preto e branco.

Sinopse
Irene Girard é uma socialite americana, mulher de um importante diplomata e homem de negócios em Itália. Após a morte dramática do seu filho, ela desenvolve profundo sentimento de culpa e sente-se compelida a ajudar pessoas necessitadas. Um dia ela ajuda um homem a escapar à polícia e acaba por ser presa. O marido, temendo um escândalo, devido ao envolvimento social da esposa, força a avaliação médica no sentido da insanidade o que a leva à prisão em estabelecimento psiquiátrico.


Tal como em "Stromboli", os elementos neorrealistas estão presentes, embora o fulcro da história esteja colocado no drama existencial da personagem Irene Girard e na sua busca empenhada de um sentido pleno para a sua vida, após a morte  do seu filho,  ela que exprime permanentes sentimentos de culpa, em virtude de admitir um comportamento negligente, face à atenção requerida pela criança. E é essa inconsolável culpa que funciona como catalisadora para a introspeção da personagem e no fundo para  a plena assimilação da apregoada "consciência social", que Rossellini nos apresenta como um slogan, logo na cena de abertura do filme, através do curioso diálogo entre dois idosos, numa noite de greve nos transportes.
E não querendo escamotear o contexto de uma tão sensível transformação e peregrinação interior, Rossellini mostra-nos a Roma do pós-guerra, com a miríade de problemas sociais, resultantes da deterioração das condições económicas, do desemprego e da criminalidade, que afetavam grande parte da população, dominada por sentimentos de alienação e desespero. E Rossellini vai até mais longe, metendo o ativismo político ao barulho, através das ideias e ações de um jornalista comunista e indo ao ponto de exemplificar o abismo socioeconómico que separava as classes privilegiadas da classe operária, através da evidente inadaptação de uma socialite como Irene, a braços (literalmente) com um trabalho duro, numa cena toda ela plena de crítica social  do  melhor neorrealismo, que o realizador nunca pôs de parte. E mais ainda se poderia dizer, da cruel indiferença, com que as classes pobres são vistas pelas abastadas e do menosprezo pelas ações de auxílio prestadas por Irene, consideradas subversivas e perigosas, a que se impunha pôr termo.
Europa 51 propõe uma meditação intimista, apaixonante e provocadora sobre um caminho pessoal de redenção e serviço na sociedade caótica do pós-guerra. A montagem desempenha um papel primordial neste filme que é composto da alternância de episódios noturnos e diurnos, oferecendo uma experiência de dicotomia visual que  ilustra de forma bipolar, a riqueza e a pobreza, a espiritualidade e o materialismo, a vaidade e a humildade, o egoísmo e o filantropismo.
O filme como um todo não pretende fazer análises sociais e políticas e muito menos sugerir medidas "curativas" para a sociedade "doente", ao serviço seja de que alinhamento for. Não seria necessário pôr na boca de Irene as palavras "Não sou comunista", mas Rossellini fez questão de o fazer, quanto mais não fosse, como denúncia do clima de "caça às bruxas", que tende a emergir em situações de crise como a vivida na época.
O mesmo se poderia dizer da religiosidade, que é manifesta no filme, mas nunca ligada a um credo específico, nem mesmo na emblemática cena final, em que a protagonista é apelidada de "santa" pelos membros da sua pobre família adotiva, no exato momento em que a sua real família, a abandona à sua alienante clausura. Nesta mística cena final, em que se vê a imagem de Irene, em serena contemplação, com o seu rosto iluminado, refletindo os raios de sol e enquadrada com as barras da prisão do asilo, é possível vislumbrar, por fim e apesar de todos os pesares, a redenção procurada por aquela mulher, que se mostra paradoxalmente liberta.

☑ VIAGEM EM ITÁLIA
"Viaggio in Italia" - Título original em italiano.
"Viagem em Itália" - Título em português.
Origem: Itália. Linguagem: Inglês (+). Italiano (-).
Ano: 1954.
Realização e Argumento (com Vitaliano Brancati): Roberto Rossellini. Baseado na novela "Duo" (1934), da escritora francesa Colette.
Com: Ingrid Bergman, George Sanders, Maria Mauban, Anna Proclemer e Paul Muller.
Cinematografia: Enzo Serafin. Musica: Renzo Rossellini.
Género: Drama psicológico/Melodrama.
Duração: 97 minutos. Preto e branco.

Sinopse
Katherine e Alexander, um casal de britânicos ricos e sofisticados, conduzem o seu Rolls-Royce pelas estradas de Itália, rumo a Nápoles, para tomar posse de uma propriedade herdada de um tio recentemente falecido e aproveitar o ensejo para gozar umas merecidas férias. Durante a viagem e estadia, a relação entre os dois vai arrefecendo, até ao ponto de ambos procurarem separadamente destinos e atrações díspares, nos dias de férias, ele optando pela companhia de uns amigos britânicos na vizinha ilha de Capri, ela preferindo a visita diária aos lugares históricos de Nápoles. Numa escalada de tensão e de acusações, amplificadas por revelações e  "insights" de um meio  rico em ressonâncias simbólicas e presságios, chegam ao ponto de falarem em divórcio. Será que este casal, encontrará em terra estrangeira, a direção e o destino adequados ? 


Na sua nota crítica nos "Cahiers de Cinema", Jacques Rivette refere-se a este filme como a "estrada aberta por onde doravante passaria todo o cinema contemporâneo". E mais: "este filme, faria com que todos os filmes da atualidade, parecessem ter, no mínimo, 10 anos de idade". Escritas desta forma enfática e peremptória,  as afirmações adquirem um especial relevo, para mais pela pena de um dos impulsionadores da "nouvelle vague", que na altura nem sequer era ondulação quanto mais vaga e que só apanharia a boleia,  bem lá  à frente na estrada, talvez uns cinco ou seis anos depois. E o mesmo deveria pensar Antonioni, que se não o escreveu,  pelo menos o exemplificou, dando razão ao oráculo francês, quando nos idos de 1960, se atreveu à "L'avventura".
Estamos perante um brilhante tratado sobre a conjugalidade mas não só.
O filme abre com um casal em viagem numa estreita estrada nos campos de Itália. Pelo carro de luxo apercebemo-nos logo do "status" socioeconómico deste casal e pela posição dos ocupantes, ressalta logo a sua condição de estrangeiros. Os planos do exterior do veículo, mostram no meio de um bucolismo animado, um rápido comboio, concorrendo ao longe. De resto, todo o cenário nos envolve num senso de continuidade e movimento, como se apanhássemos o filme a meio, remetendo-nos para uma história e um subtexto propositadamente fora de plano e que nos cabe reconstituir mentalmente. Ou seja, se é claro que aquele casal tem um passado - e isso é uma axioma da vida de qualquer casal, mesmo neófito - neste caso concreto tem interesse que ele se comece por se insinuar pelo seu lado oculto. E nesta sequência, faz sentido o que ela disse a certa altura, quando falou de um antigo apaixonado seu, um poeta, que teria perecido na guerra. Estava na realidade a querer "picar" o marido ali ao lado, mais do que a expressar saudades de outrem, do que ele deveria fazer para tudo ser diferente, quem sabe ele devesse instilar um pouco de fantasia poética e de paixão na relação...
A primeira metade do filme mostra o colapso progressivo da relação, quando a rotina e o tédio se impõem na realidade diária, apesar da comunicação honesta e aberta permanecer uma marca de diferença deste casal. Na segunda parte, os protagonistas optam pelo recolhimento pessoal, afastados um do outro e abertos ao meio físico que os envolve, que neste filme emerge de forma inovadora como uma personagem fulcral e dinâmica, em contraponto ao casal em crise, constituindo uma metáfora visual da energia emocional contida ( veja-se a coincidência de ter o vesúvio  ao lado da casa) e servindo de caixa de ressonância - literalmente  e se calhar não por acaso, na cena dos ecos na caverna, que reproduzem as vozes e por meio delas a protagonista sente o seu "feedback" interior. Os locais e as suas histórias (vejam-se as "catacumbas" e os "corpos" de Pompeia) , a arte e  a natureza (vejam-se as ionizações das crateras que se propagam e contagiam os espaços vizinhos), tudo tem a ver com os estados de espírito das personagens e os seus anseios e servem ao mesmo tempo de barómetro e de bússola num casamento em crise, uma espécie de psicanálise feita pela natureza.
A cena final emerge  como a síntese inacabada e não é por acaso que a religião dá a bênção a este "the end", convém não esquecer que o fim religioso, tem uma dimensão escatológica, ou seja, irá materializar-se algures num futuro para além da História e a propósito deste filme, talvez seja curial dizer "crer para ver" e não o contrário, para saber na realidade o que irá acontecer a este casal. Por agora visualizemos Katherine a ser figurativamente sugada para longe do marido, por uma onda  humana em plena comoção religiosa. E nesta  religiosidade turbulenta, feita de emoções, de promessas que se fazem, de milagres que se imploram, os membros do casal têm finalmente a consciência da dificuldade de estarem juntos e do risco de se perderem um para o outro, no fundo, assumindo que precisam um do outro e num último esforço procuram a reconciliação. Final forçado e demasiado idealista ou reconciliação resignada? Ou como já aventamos antes, um falso final, ao jeito de um milagre - veja-se que a cruz é o objetivo e o centro daquela mole humana... que, tal como o início do filme nos remetia para uma história antes da história, agora o fim, impele-nos para um fim sem data marcada e para um subtexto aberto a diversas interpretações. Até lá seja o que Deus quiser...

domingo, 3 de novembro de 2013

☑ CÓPIA CERTIFICADA, de Abbas Kiarostami

Cinema autêntico

"Copie conforme" - Título original em francês.
"Cópia certificada"  Título em Portugal.
Origem: França, Itália, Bélgica & Irão. Linguagem: Francês, Inglês e Italiano. Ano: 2010.
Realização: Abbas Kiarostami.
Argumento: Abbas Kiarostami, Caroline Eliacheff e Massoumeh Lahidji.
Com: Juliette Binoche, William Shimell e Jean-Claude Carrière.
Cinematografia: Luca Bigazzi.
Género: Drama. 106 minutos. Cor.
Sinopse
Na Toscana, nos dias de hoje, James Miller um escritor britânico de meia idade, faz a apresentação do seu livro sobre o valor da cópia de uma obra de arte. Na sequência do evento, o escritor encontra-se com uma mulher francesa, dona de uma galeria de arte, que o convida a deslocar-se à vila de Lucignano. Nesse itinerário, a conversa sobre arte torna-se cada vez mais pessoal e a natureza da sua relação vai-se tornando  cada vez mais ambígua e  mais complexa do que à primeira vista parecia... 


"Esqueça o original, obtenha uma boa cópia"

" As cópias são importantes porque reconduzem ao original e desta forma certificam o seu valor. E acredito que esta abordagem não se dê apenas na arte. Um leitor disse-me que encarou-a como um convite à auto-análise e à melhor compreensão de si mesmo."

"Original, é uma palavra que  está associada  a autenticidade mas etimologicamente também a nascimento e é interessante comparar a reprodução na arte e na vida humana. Afinal podemos dizer que somos umas cópias do DNA dos nossos antepassados."

(James Miller, personagem do filme.) 



"Cópia certificada" é a segunda experiência do aclamado realizador iraniano Abbas Kiarostami, fora do Irão, ele que antes já tinha realizado um documentário ("ABC África"), em 2001, a convite da ONU.
A estrutura deste filme, é perfeitamente enquadrável e reconhecível dentro  do universo artístico de Kiarostami e centra-se numa conversa entre duas personagens, dois "estranhos" que se encontram um dia, e que se dispõem ao conhecimento mútuo, viajando e conversando sobre os temas  do original e da cópia, do falso e do autêntico, da aparência e da essência, na arte e na vida. A primeira constatação sobre a estrutura do argumento, com o fulcro em torno de uma relação, que parte do "desconhecimento" e que se vai materializando e desvendando com base nos diálogos e na  interação com um cenário cheio de ressonâncias simbólicas, é de que Kiarostami é fiel a si próprio e nesta asserção, este filme como "cópia", redireciona para o Kiarostami original. Mas inevitavelmente, não só por causa do argumento mas devido à "mise-en-scène", remete também, para "antepassados" artísticos, como Rossellini em "Viagem em Itália" (1954), Linklater em "Antes do amanhecer" (1995) e de certa forma, Orson Welles em "F de fraude" (1973) e outros mais se quiséssemos ser exaustivos e aprofundássemos a genealogia da coisa. Mas para sermos justos, embora estes filmes compartilhem  reminiscências visuais e algumas coincidências temáticas, a abordagem de Kiarostami, acaba por revelar-se menos linear do que à partida se supunha,  fazendo jus às palavras do escritor do filme, quando este, a certa altura, diz que "ser simples, não tem nada de simples". Aliás, em virtude dessa demanda incessante pelas  questões e pela teorização, aqui e ali, com contornos um pouco retóricos,  o filme acaba por se revelar algo desequilibrado no binómio intelecto-emoções, porque algo insosso no condimento emotivo, mas nunca se reduzindo à mera charada mental, em todo o caso, arrefecendo um pouco no deleite que um filme de Kiarostami proporciona.
Kiarostami proporciona-nos grandes momentos de cinema aquando da transformação que se opera a certa altura da narrativa, quando os dois protagonistas passam a ser "vistos" como um "casal" e daí para a frente se comportam como tal. Não é o banal "twist" tão caro a Hollywood, revelando uma realidade oculta, mas sim o corolário da tese que percorre todo este filme, ou seja o modo como se vê uma coisa, modifica o seu valor de verdade e a aparência pode passar por essência e a cópia por original, ou vice-versa, sem que  a autenticidade seja sacrificada. Depende da forma como se olha,  o olhar  tudo transforma. Assim  na arte como na vida.

"A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida."
(Oscar Wilde)