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sexta-feira, 3 de maio de 2013

☑ O ESPÍRITO DA COLMEIA, de Victor Erice

Com os olhos e o coração à descoberta do espírito do cinema
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FICHA
Titulo em português: O espírito da colmeia
Título original em espanhol: El espíritu de la colmena
Ano: 1973
Origem: Espanha
Género: Drama, fantasia, política
Cinematografia: Luis Cuadrado
Argumento: Victor Erice, com colaborações de Ángel Fernández Santos e Francisco J. Querejeta
Realização: Victor Erice
Interpretações: Fernando Fernán Gómez, Teresa Gimpera, Ana Torrent e Isabel Tellería.

SINOPSE
Espanha, 1940. Um dia, o cinema ambulante chega a uma aldeia do planalto castelhano e é exibido o filme "Frankenstein" (1931), de James Whale. O filme impressiona sobremaneira  duas meninas, as  irmãs Isabel e Ana, sobretudo esta última, que obcecada pelo monstro do filme, inicia-se na descoberta dos mistérios do mundo.

CLIP



CRÍTICA
No princípio anuncia-se o cinema, em movimento, na planície parada e desolada.
O filme inicia-se com a proposta de um outro filme, que irrompendo dentro do nosso filme, com ele se plasma numa singular  e virulenta obra de arte, que nos arregala o nosso olhar infantil. Indiferente da nossa idade, nós estamos na primeira fila do cinema e são nossos aqueles olhares pueris que se espantam com os mistérios da criação, da morte, do bem e do mal.
Entretanto, não muito longe da sala de cinema o velho estudioso de apicultura, contempla mais uma vez perplexo, o mundo misterioso da colmeia. E também ao mesmo tempo, Teresa a mulher do apicultor,  numa viagem solitária de bicicleta, leva uma misteriosa carta ao comboio.
Apresenta-se desta forma o prodigioso filme de Victor Erice, obra multifacetada, com vários nucleos narrativos, correndo paralelamente e convergindo numa história de solidão, diferença e alienação, vista por vários ângulos mas privilegiando o olhar infantil.
Embora a simples contemplação deste filme, de delicadas matizes  emocionais, seja por si só suficiente para nos embeber numa riquissima experiência de puro cinema, há elementos do contexto socio-cultural e político, que poderão proporcionar ilações adicionais deste filme.
Deve ser referido que este é um filme rodado em 1973,  nos últimos anos  do Franquismo e não é indiferente ao contexto político, suscitando múltiplas leituras, que advêem igualmente do período histórico a que se reporta.
A narrativa ocorre na meseta catelhana, em 1940, um ano depois do fim do terrível flagelo da guerra civil espanhola e também no início da longa ditadura de Franco. Esse é também o ano do nascimento do realizador Victor Erice.

O argumento comporta várias linhas narrativas, que parecem realmente estanques uma vez que a solidão e a alienação são elementos  do enredo que propiciam tal estrutura. A principal, é a história de Ana e Isabel, as duas crianças de 6 e 8 anos, cujas vidas vão ser alteradas pela visão do filme Frankenstein de James Whale (1931), embora de forma diferenciada, díriamos até oposta. Isabel desvaloriza a importância da história relatada e quando questionada pela irmã acerca das razões que levaram o monstro a matar a menina e posteriormente a ser morto, responde que nada no cinema é verdadeiro, tudo se resumindo a truques e que o monstro existe como espírito, basta fechar os olhos e invocá-lo que ele aparece.Todo o seu comportamento posterior, culminando na sequência em que encena a sua morte - pelo monstro, presume-se - atesta essa visão das coisas, ao mesmo tempo que se revela insensivel e cruel em relação à irmã. Por outro lado Ana, confunde realidade e fantasia e empenha-se em encontrar realmente o monstro,e nessa altura a câmara e o olhar de Ana tornam-se indissociáveis. E repleta de inocência Ana, inicia a sua viagem solitária do conhecimento à escala infantil.

"- Ana o que está faltando a Don José ?
- Os olhos.
- Os olhos. Muito bem. Então coloque-os" 
Em linhas narrativas mais sumárias mas não menos importantes, fluem as histórias  do casal disfuncional de progenitores, ele alimentando a vertente intelectual  da história, com o seu universo de meditação e escrita centrada na vida das abelhas, ela representando a corrente mais emocional, cristalizada no amor perdido.
Estamos perante um filme singular, de contornos alegóricos, onde se respira uma atmosfera onírica, com ressonâncias filosóficas imediatas e simples e onde é dado ao espectador um papel importante, não meramente passivo, cabendo-lhe também a meritória tarefa de ajudar a tecer de forma coerente as delicadas texturas deste filme. 
Cenas marcantes são quase todas, desde a divertida aula de anatomia com Don José, que é apesar do seu carácter caricato, uma das muitas chaves interpretativas do filme, até aos "encontros" reais e "oníricos" de Ana com o monstro e incluindo a bela sequência final.
Quanto às conotações políticas e possiveis metáforas associadas às figuras do monstro (Franco), Ana e Isabel (Espanha, facções da guerra civil), casa/colmeia (Espanha), elas são legítimas, dependendo do gosto e da imaginação de quem as concebe.
Mas é inegável que o filme tem uma  necessária carga política, que lhe advem da oposição expressa entre o carácter gregário das abelhas e a solidão manifestada dos seus personagens. 
Este é um filme de imagens sublimes, facultadas por uma fotografia  em tons de mel,  por Luis Cuadrado, quase cego na altura da rodagem do filme (viria a suicidar-se anos mais tarde).
E  claro   não   podia   deixar   de   se   fazer   referência   à   interpretação milagrosa de Ana Torrent, como Ana.
Às belíssimas imagens, que nos deixam sem palavras para descrevê-las, juntam-se outras palavras significativas, estas ditas em partes pertinentes da narrativa pelos seus personagens, como o poema de Rosalía de Castro, lida na escola por uma criança:

Nem mesmo o rancor ou desprezo,
nem mesmo o temor de mudar.
Apenas sinto sede,
uma sede do que eu não sei que me mata.
Rios de vida, onde foram?
Ar, o ar que me falta. 
O que vês na escuridão que o faz tremer silenciosamente?
Não vejo. Vejo como um homem cego...
quando encara diretamente o sol.
Devo cair então onde os que caem nunca se levantam."
Rosalía de Castro, Poema XIII ( de Follas novas)
 
Ou da escrita obstinada de Don Fernando: 
Alguém a quem havia recentemente mostrado minha colméia de cristal,  
com o movimento de sua roda tão visível como o da roda principal de um relógio  
Alguém que via as constantes agitações dos favos de mel,
a agitação perpétua, enigmática e louca...  
das abelhas obreiras sobre os ninhos,  
as pontes e escadas que formam os alvéolos de cera,
as espirais invasoras da rainha,  
a atividade variada e incessante da multidão,  
o esforço desperdiçado e inútil,  
as idas e vindas como uma dor febril,  
a insônia sempre ignorada,  
que anuncia o trabalho da próxima manhã,  
o repouso final da morte,  
longe de uma residência que não admite enfermos nem tumbas.
Alguém que observou estas coisas,  
depois de passado o assombro inicial,
rapidamente afastou os olhos...
onde se via indescritível espanto. " 

Ou do que a páginas tantas, se ouvia do rádio de Don Fernando:
“Diga-me, você nunca ficou curioso?
Para aquilo que se esconde por trás do limite do conhecimento?
Você nunca desejou ver além das nuvens e das estrelas?
Ou saber o que faz as árvores crescerem e as sombras se iluminarem?
Se você falar isso vão te chamar de insano”.

É este mistério experimentado po Ana, na cena final, quando ela abre a janela decorada com favos de mel, desenhados na penumbra da noite e murmura:
"Se você é sua amiga,
você pode falar com ele quando quiser.
Apenas feche os olhos... e o chame.
Sou Ana." "Sou Ana."
O monstro não aparece. A janela fecha-se e Ana vira-lhe as costas e encara-nos. 
O filme acaba assim.Sublime...






 
 

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