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sexta-feira, 17 de maio de 2013

☑ A MULHER SEM CABEÇA, de Lucrecia Martel

               Quando não sabemos o que deixamos para trás
                                                             
"La mujer sin cabeza"
Argentina (2008). 
De Lucrecia Martel, com Maria Onetto, Claudia Cantero e César Bórdon. 
Drama.Mistério.Thriller psicológico.87 minutos.
Sinopse:Verónica, uma mulher de meia idade, conduzia o seu carro, num entardecer chuvoso numa estrada deserta , quando sentiu embater em algo. Após momentos de perturbação e indecisão, resolveu seguir o seu caminho, mas a partir de então ficou obcecada com o acontecimento, convencida de ter matado alguém.

Terceira longa de Lucrecia Martel, este filme foi muito mal recebido pela crítica e público do festival de Cannes em 2008, acusado de ser incompreensível. 
De facto, o trabalho anterior da realizadora Argentina já permitira traçar dela um perfil de autora cerebral  que desafiava as convenções vigentes. À superfície, o título do filme, pela sua ambiguidade, convida-nos a uma atitude eminentemente cerebral, de decifrar um mistério, tanto no sentido imediato das palavras quanto no seu alcance figurativo. 
No início do filme, Verô a personagem principal, é nos apresentada por uma característica física aparentemente trivial, o seu gabado cabelo pintado de louro. Em seguida, ao conduzir o seu carro, embate em algo que não identifica - um animal ? uma pessoa ? - e após momentos de angústia e indecisão, resolve abandonar  o local, sem sair do carro, não esclarecendo se de facto atingiu ou não uma pessoa (pareceu-lhe que sim), atitude esta, pelo menos, moralmente questionável. Estes acontecimentos desencadeiam um estado confusional na protagonista, que se torna incapaz de confiar na percepção do (seu) real e nós que vemos o filme (ficção) um pouco pelos  olhos e mente desta "mulher sem cabeça", ficamos perdidos, a precisar de um mapa. Poderemos ter a certeza do que vemos no nosso filme, guiados pela cabeça ausente desta mulher ? No limite, até poderemos duvidar, se o acidente aconteceu mesmo no mundo "real" da protagonista ou se esta o concebeu de forma onírica, num esquema muito à David Lynch, o que para nós espectadores, corresponderia a entrarmos num túnel dentro de um túnel ou de uma ficção no interior da ficção. E esta hipótese, é sugerida de mansinho, com o sono atribulado e culpado de Verô, no quarto de Hotel depois de  uma cena adúltera com um familiar. E mais ainda, perto do final, quando desaparecem misteriosamente as provas destes acontecimentos, deixando tudo em aberto. 
Surge destas premissas inquietantes o desafio de reconstituir o enredo, através de um plano B, agora deliberadamente fora da perspectiva de Verô e estudando a interação da protagonista com as  personagens significativas da sua envolvência. Todas as pistas que nos são fornecidas apontam para um efeito "gota de água", algo de insidioso que se foi sedimentando em Verô, até implodir na forma de um choque emocional clássico, com problemas de percepção e sinais de desfasamento da realidade. 
Falar de amnésia é impróprio, como parece forçado fazer uma leitura psicanalítica e política desta situação, como se o filme fosse uma metáfora à ditadura militar dos anos 70, com os seus desaparecimentos e assassínios, embora se insinue uma colagem dos acontecimentos a essa época, nomeadamente através da banda sonora do filme. Nós não iremos tão longe, embora o peso político, à luz dos contrastes sociais subtilmente expostos no filme, seja uma evidência. 
E a culpa? será que não é importante a culpa ? Se este filme,  não fosse também sobre uma culpa, ainda que indefinida no seu objecto, não teria importância a obsessão da protagonista com "aquilo" que ficou na imagem do espelho retrovisor e esse facto não teria repercussão nas outras personagens, o que decididamente não é o caso. Mas a expressão desta suposta culpa será talvez, uma válvula de escape de algo mais profundo que se esconde na vacuidade aparente do mundo mental da protagonista.
Os elementos telúricos, sobretudo a água, são omnipresentes na narrativa e o seu simbolismo não deve ser menosprezado. Assim, depois da tormenta, que "turvou" tudo, incluindo  o que se vislumbra pelos vidros embaciados dos carros e o aspeto da água das torneiras - "Espere até clarear", diz a Verô, a certa altura, o empregado do Hotel - e depois de muita água ter passado debaixo das pontes, a protagonista pinta o cabelo de preto - de novo a água, que muda (quase) tudo - a mulher parece agora ter recuperado a cabeça sobre os ombros e nós o fio à meada. Será assim?
A resposta a esta pergunta está no final, quando somos convidados a visualizar o regresso a uma aparente normalidade através de uma barreira desfocada de vidro.
Em suma, estamos perante um filme que coloca questões pertinentes sobre a percepção e a memória dos acontecimentos e o modo como lidamos com as dúvidas permanentemente suscitadas pelas leituras das imagens que persistem desfocadas no nosso espelho retrovisor mental.

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