☑ NOITES BRANCAS, de Fiódor Dostoiévski (1848)
Autor: Fiódor Dostoiévski
Origem: Rússia. Ano:1848.
Editora: Clube do Autor. Edição portuguesa: 2013
Nº de páginas: 136
Editora: Clube do Autor. Edição portuguesa: 2013
Nº de páginas: 136
Género: Ficção. Romance.
Sinopse
«Nunca nos esquecemos do primeiro livro que nos fez chorar de emoção, é como viver o primeiro amor. (…) Noites Brancas é mais do que um livro terno e perfeito: é uma lição de vida imortal.»
Margarida Rebelo Pinto.
Numa noite luminosa, numa ponte sobre o rio Neva, um jovem sonhador depara-se com uma mulher em lágrimas. Petersburgo está mergulhada em mais uma das suas noites brancas, um fenómeno que faz as noites parecerem tão claras quanto os dias e que confere à cidade a atmosfera onírica ideal para o encontro entre essas duas almas perdidas. Ao longo de quatro noites, o tímido jovem e a ingénua rapariga estabelecem laços intensos, mas o desenrolar romântico deste fugaz encontro pode estar ameaçado…
«Dostoiévski é um dos mais literários e cativantes romancistas de sempre» The Washington Post Book World ( in FNAC )
Margarida Rebelo Pinto.
Numa noite luminosa, numa ponte sobre o rio Neva, um jovem sonhador depara-se com uma mulher em lágrimas. Petersburgo está mergulhada em mais uma das suas noites brancas, um fenómeno que faz as noites parecerem tão claras quanto os dias e que confere à cidade a atmosfera onírica ideal para o encontro entre essas duas almas perdidas. Ao longo de quatro noites, o tímido jovem e a ingénua rapariga estabelecem laços intensos, mas o desenrolar romântico deste fugaz encontro pode estar ameaçado…
«Dostoiévski é um dos mais literários e cativantes romancistas de sempre» The Washington Post Book World ( in FNAC )
Um belo conto de Dostoiévski, escrito em 1848 antes da sua prisão. Nesta altura o escritor vivia uma fase atribulada da sua vida, nomeadamente no campo amoroso, sendo mais ou menos pública a paixão que dedicava a uma mulher casada, que fazia parte do seu círculo de relações.
Nesta obra, o autor parece projectar muito do seu mundo interior e das suas expectativas sobre o protagonista, um pobre e solitário funcionário, que vagueando uma ocasião pela noite clara de S. Petersburgo, encontra Nastenka, uma jovem a chorar na ponte e de quem se aproxima. Nessa e nas três noites seguintes, ele aos poucos, tenta vencer a desconfiança da jovem em relação à sua pessoa e dessa aproximação e conhecimento mútuo, brota uma paixão pela moça, que não encontra retribuição, uma vez que esta já terá oferecido o seu coração a outro homem, por quem espera todas as noites na ponte. Ao homem sem nome, nada mais resta a não ser vê-la e partilharem entre si as suas vidas, um bocadinho cada noite e sonhar com a possibilidade da rapariga, corresponder, por fim, ao apelo da sua paixão.
Esta pequena história, tem muito a ver com o clima mental e emocional do escritor mas mesmo assim surpreende a sua aderência a um romantismo alheio ao fio condutor da sua obra. É possível no entanto, uma leitura alternativa defendendo uma autocrítica no subtexto da obra, como se o autor assumisse a paixão romântica e as suas consequências, mas exagerasse propositadamente no carácter pueril do enredo e no trato afectado e lamechas do protagonista, como uma característica negativa, a evitar. Este sonhador de "Noites Brancas é considerado pelo autor uma “aberração social", como ele explica nas "Crónicas de Petersburgo", em 1847: "Não podendo o homem encontrar o seu lugar no mundo, “(...) , nasce a pouco e pouco aquilo a que se chama ‘sonhadorismo’, e o homem deixa de ser homem, torna-se uma espécie esquisita... — o ‘sonhador’ (...). A realidade produz no coração do sonhador uma impressão grave, hostil, que então se apressa a meter no seu cantinho secreto e dourado, que na realidade é, não raro, poeirento, desmazelado, desarrumado e porco. A pouco e pouco, o nosso rebelde começa a alienar-se dos interesses comuns e, gradualmente, imperceptivelmente, começa a embotar-se nele o talento de viver na vida real.”
Mais do que de um amor não correspondido, este livro trata da solidão e da reação pessoal que dela enferma, com comportamentos que vão desde a inércia e o conformismo até ao sonho alienante, mais afastado da realidade. O tom piegas e pegajoso do personagem apaixonado, não deve ser lido como uma imagem ou apologia do autor, que no entanto, por experiência pessoal vive uma situação idêntica e vislumbra no carácter imaginativo da ficção, uma oportunidade de retratar os exageros e desmandos da condição de enamoramento, que é em si mesma imaterial, desmedida e absolutamente ridícula ao filtro do pensamento racional.
No meio termo, o livro - sobretudo pela parte de Nastenka- não deixa de valorizar o lado positivo do encontro e da partilha de vida, mesmo que não implique um desfecho romântico.
No meio termo, o livro - sobretudo pela parte de Nastenka- não deixa de valorizar o lado positivo do encontro e da partilha de vida, mesmo que não implique um desfecho romântico.
Segunda noite:
☑ NOITES BRANCAS, de Luchino Visconti (1957)
☑ NOITES BRANCAS, de Luchino Visconti (1957)
"Le Nottti Bianche" - Título original em italiano.
"Noites brancas" - Título em português (Portugal e Brasil).
Realização: Luchino Visconti.
Argumento: Luchino Visconti e S. Cecchi D'Amico, baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Maria Schell, Marcello Mastroianni e Jean Marais.
Origem: Itália, França. Ano: 1957. Produção: Franco Cristaldi.
Cinematografia: Giuseppe Rotunno.
Música: Nino Rota.
Género: Drama. Romance. Duração: 97 minutos. Preto e branco.
Sinopse
Um triangulo amoroso em que o passado marca profundamente o presente. Mario (Marcello Mastroianni) é um pobre e solitário funcionário destacado para Livorno. Numa noite clara, vagueando pelas ruas, ele encontra Natalia (Maria Schell) chorando numa ponte. Ela esperava, noite após noite, pelo apaixonado (Jean Marais) que lhe prometera voltar. Mario acompanha Natalia, ajuda-a a livrar-se de indesejáveis, distrai-a, dança com ela e apaixona-se por ela...
Será que ele conseguirá conquistar Natalia, afastando-a de um passado e de um homem que provavelmente nunca regressará ?
Por muitos considerada uma obra menor de Visconti, talvez porque o mestre se atreva neste filme, a deixar o seu amado neorrealismo em banho-maria (Schell), servindo-se de um cenário inteiramente construído no estúdio da Cinecittà e inovando numa abordagem estilizada e etérea do conto de Dostoiévski, a cuja adaptação meteu braços e ideias, conjuntamente com Cecchi D'Amico.
Visconti encerrando-se no seu estúdio, de decores transparentes e revestido da necessária aura lunar das fábulas e dos contos de fadas, pôde controlar a economia do filme em todos os seus variados aspectos e neste sentido, "Noites brancas" afigura-se como o anti - "Sentimento", um filme que com a sua magnificência realista, quase arruinou a carreira do realizador.
A atmosfera romântica do conto de Dostoiévski é de forma sublime transportada para o filme, com o cenário de uma beleza irreal e fantasmática, servindo de fundo à mise-en-scène teatral e aos diálogos expressivamente melodramáticos dos personagens. No aspecto formal, a fotografia a preto e branco, de Giuseppe Rotunno é um elemento essencial na consistência estética e somos presenteados com imagens de uma beleza espectral, raramente vislumbrada na sétima arte, testemunhando as deambulações nocturnas pela cidade, ao ritmo das conversas, das confissões e das memórias de Natalia e de Mario. A música de Nino Rota, enquadra-se igualmente neste conjunto coerente que Visconti apresenta no produto final.
Marcello Mastroianni, com o seu carisma e competência, encarna um homem frágil e imaturo, um solitário noctívago que vive verdadeiramente de noite e vegeta de dia. Natalia é muito bem defendida por Maria Schell, premiada em Cannes três anos antes pelo filme de Helmut Kautner, "A última ponte (1964). Entres os dois desenvolve-se a clássica relação de amor não correspondida, com o vértice decisivo do triangulo a pertencer ao misterioso amante de Natalia, aqui um quase fantasma Jean Marais, por milagre arrancado por momentos ao imaginário quase exclusivo do cinema de Jean Cocteau e explicando o investimento francês na produção. Poder-se-á dizer com propriedade, estarmos perante mais uma meditação sobre o acto de enamoramento que é em si mesmo risível e ridículo do que uma reflexão sobre os mistérios do amor e as suas consequências. A beleza deste filme é uma marca irrefutável mas constantemente ameaçada pela implausibilidade e pelos excessos melodramáticos de uma narrativa algo fragmentária, onde colam mal, alguns elementos neorrealistas superficiais e metidos à pressão, como a figura da prostituta e dos sem abrigo nas margens do rio. No entanto, estamos perante um cinema que respira magia em cada instante, sublimada pela maravilhosa fotografia de Giuseppe Rotunno e pelo cenário encantador da Cinecittà.
A cena de abertura do filme introduz-nos a figura do sonhador, Jacques, um jovem imaturo que encolhe os ombros ao destino. E logo o seu temperamento se mostra ademais errático, escolhendo primeiro o campo, onde se passeia despreocupado, dá cambalhotas infantis, canta e assobia, alheando-se da realidade social envolvente, e depois na cidade onde se revela um pintor no mínimo muito sui-generis. Na casa onde habita em Paris, acumula quadros inacabados e apercebemo-nos que a sua inspiração, dura sempre apenas breves segundos, aqueles que dedica a umas fugazes pinceladas monocromáticas, no interior de formas predefinidas, aparentemente esboços de sonhadas musas. E nas ruas da cidade, podemos comprovar como a sua imaginação é realmente pobre ao contrário da sua ambição que é desmedida, pois o artista anda mesmo à procura da mulher ideal e a avaliar pelas escolhas visuais o seu gosto é deveras refinado. Nas ruas de Paris demonstra uma fixação por bonitas e desconhecidas mulheres, que resolve seguir, de forma inconsequente, pois não consegue esconder a sua extrema timidez. No fim de mais uma frustrante perseguição, um dos seus colegas pintores, faz-lhe uma visita no seu lar-atelier e em conversa com o sonhador, brinda-nos com uma preleção sobre o artista, o objecto e a arte, que soando assaz retórica e irónica é no entanto, uma das chaves interpretativas para o filme, ou melhor, para a forma como Bresson o concebeu. Trata-se de ver a obra de arte como resultado de "uma reunião entre o artista e o seu conceito. O importante não é o artista nem o objecto, mas o gesto que eleva a presença do objecto, que está suspenso no espaço que o delimita e de facto o suporta. Não é o artista e o objecto que estão lá, mas sim o objecto e o artista que não estão lá. É o desaparecimento visível que faz a tela". Na forma enfática e mecânica com que estas herméticas asserções nos são apresentadas, intercaladas significativamente com a pergunta "compreendes ?", perpassa uma fina ironia e dir-se-á que neste filme, Bresson quer reflectir sobre essa busca da elusiva transcendência do amor, como uma imagem criada que se torna visível pelo gesto dessa procura, mas essa aparição implica o apagamento do artista e do objecto, ou seja, dos amantes originais.
Mas a Bresson não interessa tanto a apologia dessa transcendência quanto a desconstrução do mito do ideal romântico do amor. E enquanto meditamos no significado das palavras metralhadas mecanicamente pelo intelectual amigo do sonhador, a narrativa conduz-nos à primeira das noites, aquela onde se dá o encontro entre Jacques e Marthe, a mulher misteriosa em cima da ponte, fazendo crer a toda a gente, que estaria prestes a cometer suicídio. A ponte e a típica donzela em perigo, do imaginário romântico. Ora aí está a aplicação da primeira parte do enunciado teórico anterior: ao resgatá-la, Jacques passa a ter por fim o seu objecto de desejo. Será ele capaz daquele gesto decisivo que se impõe ? E quando Marthe lhe pede para contar a sua história, ele é igual a si próprio e responde: "Qual história ? Não tenho nenhuma história." Na noite seguinte - a segunda noite - em que ambos combinaram encontrarem-se naquela mesma ponte, começa a história de Marthe, que ao contrário da história de Jacques é repleta de pormenores importantes. É um comentário da memória idealizada e ao mesmo tempo a recentragem no objecto, que Bresson faz emergir subtilmente do subtexto. Ficamos a saber que a pequena perdeu-se de amores por um marmanjo, que foi estudar para Yale, prometendo voltar um ano depois àquela mesma ponte onde se separaram. Porque a ponte serve tanto para unir como para separar. E é por isso que ela vai lá todas as noites e já passou o tempo combinado. Depois em deliciosos flashbacks, Bresson remete-nos para o passado daquela relação, o modo como se conheceram, a atração mútua, o desejo crescente e a sua materialização. Pelo meio, Bresson faz questão de nos presentear com doses generosas de humor, que não lhe conhecíamos das circunspectas obras anteriores. A este respeito, é impagável a cena do cinema. É preciso lembrar que foi o amado de Marthe, que ainda em fase de sedução, lhe ofereceu bilhetes para o filme "The bonds of love" (As obrigações do amor) para ela ir com a sua avó, já que ele não podia. E o filme, começa ainda antes de rodar na tela, cá fora na entrada, com a cena dos fotógrafos a "flashar" os convidados VIPs e quiça também o próprio elenco em " Hollywood mode" e depois já com o filme a correr, vemos um dos artistas a levar com uma rajada de metralhadora no coração (!) e depois um tiro na testa e ainda ter alento para sacar com gestos bem coordenados, uma fotografia da amada de um dos bolsos do casaco para morrer a olhar para ela. Logo depois, Marthe desabafa que foram alvo de uma armadilha, enquanto a avó está banhada em lágrimas. E desta forma, Bresson brinca com com o amor romântico. Como brinca também, quando põe o nosso sonhador desmiolado a fazer gravações de frases ocas sobre o amor e a soletrar o nome "Marthe", para ouvir depois repetidamente a gravação.
E com o tempo, embora Marthe continue obcecada com o seu amado, apercebemo-nos de que apesar da lengalenga romântica, ela vai cedendo por dentro e por fora quando realmente Jacques se chega à frente e afirma corajoso: "Que é que se passa ? O que se passa é que eu te amo !" E decerto, se o ausente não resolvesse aparecer, outros interesses falariam mais alto...
Mas apesar de tudo, no fim faz-se a justiça, não tanto à medida dos grandes ideais, mas indo ao encontro das mais sábias deduções da vida real, porque o nosso sonhador nunca foi capaz de um gesto à altura do másculo amante da donzela em perigo, que decerto no devia e havia, ganhou a parada. Apesar de uns tíbios apalpanços, e de uma declaração à homem, Jacques nunca foi capaz de lhe atiçar o desejo e mudar o rumo magnético do seu amor. Tarde piaste, bem feito !
Bresson, num registo diferente do habitual, entre o sardónico e o condescendente, mas definitivamente importante e recomendável.
A primeira constatação sobre este filme é que a sua putativa relação com as "noites brancas" de Dostoiévski, não é assumida pelos autores do argumento e isso é de resto uma evidência da narrativa, embora algumas semelhanças não pareçam ser meras coincidências. E de resto, James Gray não esconde por um lado uma admiração (até pelas suas raízes comuns) pelo retratista psicológico por excelência que é Dostoiévski e por outro lado, é conhecido o seu fascínio pela obra homónima de Visconti, de quem admite alguma inspiração, pelo menos na estruturação das relações com o espaço físico, expresso não tanto na deambulação nocturna que aqui não acontece, mas em certos pormenores de enquadramento: o terraço em vez da ponte, como lugar de encontro, com a madrugada a raiar e o claro da névoa em fundo, lembrando as "noite brancas" de Visconti... As repetidas cenas de comunicação visual e verbal entre Leonard e Michelle, nas suas janelas, que dotam a narrativa de um senso de distância, de vácuo (e também um pouco de voyeurismo à Hitchcock...) e se quisermos de "nonsense" e até ridículo, como uma característica do estado de enamoramento, apesar de toda a ingenuidade, afectividade e doçura de um homem desorientado pela paixão.
A segunda observação, é que estamos perante um exemplar estudo psicológico das personagens enquadradas realisticamente nas suas coordenadas sociais e familiares. E neste ponto, o clima não é alheio a Dostoiévski e também e sobretudo, à obra - se podemos chamar obra a 4 filmes... - de James Gray. Nos filmes anteriores, estamos no universo muito particular do realizador, ao fim e ao cabo, o das suas raízes, ele que é um neto de emigrantes russos em NY. E nesse universo é crucial o papel da família e os conceitos de solidariedade e de lealdade e também de honorabilidade, embora esta, muitas vezes apenas como aparência ou fachada. E não é por acaso que Joaquin Phoenix entra neste e em mais dois dos seus filmes anteriores, "As teias da corrupção", de 2000 e "Nós controlamos a noite", de 2007, já que Gray assume o carácter autobiográfico no que diz respeito aos personagens, interpretados por alguém que diz ser um duplo de si mesmo...
Os personagens de Gray e neste particular Leonard, vivem na tensão da fuga e do retorno a um núcleo/prisão que pode ser a família, (e a imagem do filho pródigo é recorrente) ou a pessoas, ideias ou projectos. E no exemplo mais extremo, na fuga da vida (o suicídio) e o consequente retorno ou para sermos mais precisos, o renascimento - a água onde Leonard quer pôr fim à sua vida, é a também a água que arrefece os instintos e purifica a alma, no sentido batismal do termo...
Esta ideia do retorno, consubstancia uma geometria circular no pensamento de Gray. A cena inicial é a da tentativa de suicídio, mas ela bem poderá ser visto no fim do filme e o contrário ser exequível e verossímil. O próprio triangulo amoroso convencional é rejeitado dentro desta mesma lógica e o aparente losango do filme é tão variável, que está sempre a metamorfosear-se num círculo perfeito, aquele que melhor expressa o espaço das relações entre estes personagens, cujos movimentos denotam apenas uma liberdade condicional e estão sempre equidistantes de uma referência central ( a família, a honra, o compromisso).
Num trabalho de pormenor e de mestria que já começa a ser um hábito em James Gray, este filme revela de forma refulgente, as idiossincrasias da alma humana, os sabores e dissabores da paixão e a estranha humilhação e ridículo que subjazem ao acto de estar-se apaixonado, sem se poder calcular as suas consequências.
Visconti encerrando-se no seu estúdio, de decores transparentes e revestido da necessária aura lunar das fábulas e dos contos de fadas, pôde controlar a economia do filme em todos os seus variados aspectos e neste sentido, "Noites brancas" afigura-se como o anti - "Sentimento", um filme que com a sua magnificência realista, quase arruinou a carreira do realizador.
A atmosfera romântica do conto de Dostoiévski é de forma sublime transportada para o filme, com o cenário de uma beleza irreal e fantasmática, servindo de fundo à mise-en-scène teatral e aos diálogos expressivamente melodramáticos dos personagens. No aspecto formal, a fotografia a preto e branco, de Giuseppe Rotunno é um elemento essencial na consistência estética e somos presenteados com imagens de uma beleza espectral, raramente vislumbrada na sétima arte, testemunhando as deambulações nocturnas pela cidade, ao ritmo das conversas, das confissões e das memórias de Natalia e de Mario. A música de Nino Rota, enquadra-se igualmente neste conjunto coerente que Visconti apresenta no produto final.
Marcello Mastroianni, com o seu carisma e competência, encarna um homem frágil e imaturo, um solitário noctívago que vive verdadeiramente de noite e vegeta de dia. Natalia é muito bem defendida por Maria Schell, premiada em Cannes três anos antes pelo filme de Helmut Kautner, "A última ponte (1964). Entres os dois desenvolve-se a clássica relação de amor não correspondida, com o vértice decisivo do triangulo a pertencer ao misterioso amante de Natalia, aqui um quase fantasma Jean Marais, por milagre arrancado por momentos ao imaginário quase exclusivo do cinema de Jean Cocteau e explicando o investimento francês na produção. Poder-se-á dizer com propriedade, estarmos perante mais uma meditação sobre o acto de enamoramento que é em si mesmo risível e ridículo do que uma reflexão sobre os mistérios do amor e as suas consequências. A beleza deste filme é uma marca irrefutável mas constantemente ameaçada pela implausibilidade e pelos excessos melodramáticos de uma narrativa algo fragmentária, onde colam mal, alguns elementos neorrealistas superficiais e metidos à pressão, como a figura da prostituta e dos sem abrigo nas margens do rio. No entanto, estamos perante um cinema que respira magia em cada instante, sublimada pela maravilhosa fotografia de Giuseppe Rotunno e pelo cenário encantador da Cinecittà.
Terceira noite:
☑ AS QUATRO NOITES DE UM SONHADOR, de Robert Bresson (1971)
"Quatre nuits d'un rêveur" - título original em francês.
" As Quatro noites de um sonhador" - título em português.
Realização: Robert Bresson.
Argumento: Robert Bresson, baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Isabelle Weingarten, Guillaume des Forêts e Jean-Maurice Monnoyer.
Origem: França, Itália. Ano: 1971. Produção: Gean Vittorio Baldi.
Cinematografia: Pierre Lhomme.
Música: F. R. David.
Género: Drama. Romance. Duração: 87 minutos. Cor.
Sinopse
O sonhador chama-se Jacques e é um jovem pintor parisiense que numa noite, encontra por acaso, uma mulher em acto de iminente suicídio, na pont-Neuf. Essa mulher chama-se Marthe e pouco a pouco, Jacques vai descobrindo as razões para o comportamento desta mulher, apercebendo-se que ela todas as noites, espera na ponte, pelo seu amante ausente que lhe prometera voltar um dia. Nas quatro noites que encontra Marthe, Jacques, sonha com o amor dessa mulher, esperando que nunca se concretize o reencontro com o homem ausente...
A cena de abertura do filme introduz-nos a figura do sonhador, Jacques, um jovem imaturo que encolhe os ombros ao destino. E logo o seu temperamento se mostra ademais errático, escolhendo primeiro o campo, onde se passeia despreocupado, dá cambalhotas infantis, canta e assobia, alheando-se da realidade social envolvente, e depois na cidade onde se revela um pintor no mínimo muito sui-generis. Na casa onde habita em Paris, acumula quadros inacabados e apercebemo-nos que a sua inspiração, dura sempre apenas breves segundos, aqueles que dedica a umas fugazes pinceladas monocromáticas, no interior de formas predefinidas, aparentemente esboços de sonhadas musas. E nas ruas da cidade, podemos comprovar como a sua imaginação é realmente pobre ao contrário da sua ambição que é desmedida, pois o artista anda mesmo à procura da mulher ideal e a avaliar pelas escolhas visuais o seu gosto é deveras refinado. Nas ruas de Paris demonstra uma fixação por bonitas e desconhecidas mulheres, que resolve seguir, de forma inconsequente, pois não consegue esconder a sua extrema timidez. No fim de mais uma frustrante perseguição, um dos seus colegas pintores, faz-lhe uma visita no seu lar-atelier e em conversa com o sonhador, brinda-nos com uma preleção sobre o artista, o objecto e a arte, que soando assaz retórica e irónica é no entanto, uma das chaves interpretativas para o filme, ou melhor, para a forma como Bresson o concebeu. Trata-se de ver a obra de arte como resultado de "uma reunião entre o artista e o seu conceito. O importante não é o artista nem o objecto, mas o gesto que eleva a presença do objecto, que está suspenso no espaço que o delimita e de facto o suporta. Não é o artista e o objecto que estão lá, mas sim o objecto e o artista que não estão lá. É o desaparecimento visível que faz a tela". Na forma enfática e mecânica com que estas herméticas asserções nos são apresentadas, intercaladas significativamente com a pergunta "compreendes ?", perpassa uma fina ironia e dir-se-á que neste filme, Bresson quer reflectir sobre essa busca da elusiva transcendência do amor, como uma imagem criada que se torna visível pelo gesto dessa procura, mas essa aparição implica o apagamento do artista e do objecto, ou seja, dos amantes originais.
Mas a Bresson não interessa tanto a apologia dessa transcendência quanto a desconstrução do mito do ideal romântico do amor. E enquanto meditamos no significado das palavras metralhadas mecanicamente pelo intelectual amigo do sonhador, a narrativa conduz-nos à primeira das noites, aquela onde se dá o encontro entre Jacques e Marthe, a mulher misteriosa em cima da ponte, fazendo crer a toda a gente, que estaria prestes a cometer suicídio. A ponte e a típica donzela em perigo, do imaginário romântico. Ora aí está a aplicação da primeira parte do enunciado teórico anterior: ao resgatá-la, Jacques passa a ter por fim o seu objecto de desejo. Será ele capaz daquele gesto decisivo que se impõe ? E quando Marthe lhe pede para contar a sua história, ele é igual a si próprio e responde: "Qual história ? Não tenho nenhuma história." Na noite seguinte - a segunda noite - em que ambos combinaram encontrarem-se naquela mesma ponte, começa a história de Marthe, que ao contrário da história de Jacques é repleta de pormenores importantes. É um comentário da memória idealizada e ao mesmo tempo a recentragem no objecto, que Bresson faz emergir subtilmente do subtexto. Ficamos a saber que a pequena perdeu-se de amores por um marmanjo, que foi estudar para Yale, prometendo voltar um ano depois àquela mesma ponte onde se separaram. Porque a ponte serve tanto para unir como para separar. E é por isso que ela vai lá todas as noites e já passou o tempo combinado. Depois em deliciosos flashbacks, Bresson remete-nos para o passado daquela relação, o modo como se conheceram, a atração mútua, o desejo crescente e a sua materialização. Pelo meio, Bresson faz questão de nos presentear com doses generosas de humor, que não lhe conhecíamos das circunspectas obras anteriores. A este respeito, é impagável a cena do cinema. É preciso lembrar que foi o amado de Marthe, que ainda em fase de sedução, lhe ofereceu bilhetes para o filme "The bonds of love" (As obrigações do amor) para ela ir com a sua avó, já que ele não podia. E o filme, começa ainda antes de rodar na tela, cá fora na entrada, com a cena dos fotógrafos a "flashar" os convidados VIPs e quiça também o próprio elenco em " Hollywood mode" e depois já com o filme a correr, vemos um dos artistas a levar com uma rajada de metralhadora no coração (!) e depois um tiro na testa e ainda ter alento para sacar com gestos bem coordenados, uma fotografia da amada de um dos bolsos do casaco para morrer a olhar para ela. Logo depois, Marthe desabafa que foram alvo de uma armadilha, enquanto a avó está banhada em lágrimas. E desta forma, Bresson brinca com com o amor romântico. Como brinca também, quando põe o nosso sonhador desmiolado a fazer gravações de frases ocas sobre o amor e a soletrar o nome "Marthe", para ouvir depois repetidamente a gravação.
E com o tempo, embora Marthe continue obcecada com o seu amado, apercebemo-nos de que apesar da lengalenga romântica, ela vai cedendo por dentro e por fora quando realmente Jacques se chega à frente e afirma corajoso: "Que é que se passa ? O que se passa é que eu te amo !" E decerto, se o ausente não resolvesse aparecer, outros interesses falariam mais alto...
Mas apesar de tudo, no fim faz-se a justiça, não tanto à medida dos grandes ideais, mas indo ao encontro das mais sábias deduções da vida real, porque o nosso sonhador nunca foi capaz de um gesto à altura do másculo amante da donzela em perigo, que decerto no devia e havia, ganhou a parada. Apesar de uns tíbios apalpanços, e de uma declaração à homem, Jacques nunca foi capaz de lhe atiçar o desejo e mudar o rumo magnético do seu amor. Tarde piaste, bem feito !
Bresson, num registo diferente do habitual, entre o sardónico e o condescendente, mas definitivamente importante e recomendável.
Quarta noite:
☑ DUPLO AMOR, de James Gray (2008)
" Duplo amor" - título em portugal e "Amantes" (Brasil).
Realização: James Gray.
Argumento: James Gray e Ric Menello. Sem crédito, o ser baseado no conto de Fiódor Dostoiévski, "Noites brancas", de 1848.
Com: Joaquin Phoenix, Gwineth Paltrow, Vinessa Shaw, Elias Koteas, Moni Moshonov e Isabella Rossellini.
Origem: EUA. Ano: 2008.
Cinematografia: Joaquin Baca-Asay.
Género: Drama. Romance. Duração: 110 minutos. Cor.
Sinopse
Em Brooklyn NY, nos dias de hoje, Leonard é o filho único de um casal de emigrantes judeus russos, que têm uma lavandaria. Abandonado pela noiva e com um distúrbio bipolar que se agrava, tenta o suicídio. A família burguesa, dá-lhe todo o apoio e apresenta-o a Sandra, como eles de origem judaica e filha de um parceiro nos negócios, sendo desejado por ambas as famílias uma união entre os dois. A doce e ajuizada Sandra revela a Leonard, que já há algum tempo sente paixão por ele. Mas Leonard, deixa-se encantar por Michelle uma deslumbrante e instável vizinha que lhe dá atenção mas não o seu coração porque esse pertence a um homem casado, com quem ela tem um caso.
A primeira constatação sobre este filme é que a sua putativa relação com as "noites brancas" de Dostoiévski, não é assumida pelos autores do argumento e isso é de resto uma evidência da narrativa, embora algumas semelhanças não pareçam ser meras coincidências. E de resto, James Gray não esconde por um lado uma admiração (até pelas suas raízes comuns) pelo retratista psicológico por excelência que é Dostoiévski e por outro lado, é conhecido o seu fascínio pela obra homónima de Visconti, de quem admite alguma inspiração, pelo menos na estruturação das relações com o espaço físico, expresso não tanto na deambulação nocturna que aqui não acontece, mas em certos pormenores de enquadramento: o terraço em vez da ponte, como lugar de encontro, com a madrugada a raiar e o claro da névoa em fundo, lembrando as "noite brancas" de Visconti... As repetidas cenas de comunicação visual e verbal entre Leonard e Michelle, nas suas janelas, que dotam a narrativa de um senso de distância, de vácuo (e também um pouco de voyeurismo à Hitchcock...) e se quisermos de "nonsense" e até ridículo, como uma característica do estado de enamoramento, apesar de toda a ingenuidade, afectividade e doçura de um homem desorientado pela paixão.
A segunda observação, é que estamos perante um exemplar estudo psicológico das personagens enquadradas realisticamente nas suas coordenadas sociais e familiares. E neste ponto, o clima não é alheio a Dostoiévski e também e sobretudo, à obra - se podemos chamar obra a 4 filmes... - de James Gray. Nos filmes anteriores, estamos no universo muito particular do realizador, ao fim e ao cabo, o das suas raízes, ele que é um neto de emigrantes russos em NY. E nesse universo é crucial o papel da família e os conceitos de solidariedade e de lealdade e também de honorabilidade, embora esta, muitas vezes apenas como aparência ou fachada. E não é por acaso que Joaquin Phoenix entra neste e em mais dois dos seus filmes anteriores, "As teias da corrupção", de 2000 e "Nós controlamos a noite", de 2007, já que Gray assume o carácter autobiográfico no que diz respeito aos personagens, interpretados por alguém que diz ser um duplo de si mesmo...
Os personagens de Gray e neste particular Leonard, vivem na tensão da fuga e do retorno a um núcleo/prisão que pode ser a família, (e a imagem do filho pródigo é recorrente) ou a pessoas, ideias ou projectos. E no exemplo mais extremo, na fuga da vida (o suicídio) e o consequente retorno ou para sermos mais precisos, o renascimento - a água onde Leonard quer pôr fim à sua vida, é a também a água que arrefece os instintos e purifica a alma, no sentido batismal do termo...
Esta ideia do retorno, consubstancia uma geometria circular no pensamento de Gray. A cena inicial é a da tentativa de suicídio, mas ela bem poderá ser visto no fim do filme e o contrário ser exequível e verossímil. O próprio triangulo amoroso convencional é rejeitado dentro desta mesma lógica e o aparente losango do filme é tão variável, que está sempre a metamorfosear-se num círculo perfeito, aquele que melhor expressa o espaço das relações entre estes personagens, cujos movimentos denotam apenas uma liberdade condicional e estão sempre equidistantes de uma referência central ( a família, a honra, o compromisso).
Num trabalho de pormenor e de mestria que já começa a ser um hábito em James Gray, este filme revela de forma refulgente, as idiossincrasias da alma humana, os sabores e dissabores da paixão e a estranha humilhação e ridículo que subjazem ao acto de estar-se apaixonado, sem se poder calcular as suas consequências.
Vi os dois primeiros.Contra a corrente e provavelmente tambem contra a razão,eu prefiro de longe o filme do Conde .Não sabia alguns pormenores que a apresentação feita nos informa".Extraordinario" o pormenor de ser feito em estudio.Se ha filme para estudio este sera um deles.Creio que o autor se esta a criar provavelmente gostaria de começar por criar os cenarios da ação.Quando se lê um livro nós inevitavelmente (de formas diferentes)imaginamos um cenário onde a ação se passa.Creio que Visconti tera imaginado aquilo e assim o fez.Onde quero chegar?A que uma obra de arte como acho que este filme é fica mais densa quando tudo foi feito só para aquele fim e proporcionar aquelas emoções.
ResponderEliminarO filme do Bresson é muito intenso mas fica um travo amargo sobre os personagens.Não são tão reais e ele que amava sobretudo a "não interpretação".
Fico com Visconti.Ser ou não ser neo realista é uma questão que ja não faz sentido se é que alguma vez o fez.Talvez veja o do americano e se o fizer volterei a comentar.