Ainda que com novas nuances, voltamos aos temas da cópia e do original, que nos entreteve em vários "posts" anteriores deste blog.
As novas nuances, são as deliberadas versões cinematográficas, mas poderiam ser teatrais ou até literárias, de obras anteriores, com intuitos à partida não fraudulentos, pretendendo ver os mesmos assuntos sob outras perspectivas e desta forma contribuir para um enriquecimento e aprofundamento dos conhecimentos humanos e artísticos e até para uma maior aproximação à "verdade".
São muito curiosos os dois filmes que se revêem em seguida, porque primeiro o "original" e depois a "cópia", falam desta dispersão de pontos de vista, com que os mesmos acontecimentos são vistos e lidos por vários observadores da realidade e das razões objectivas ou subjectivas que sustentam essas leituras. E novas perspectivas emergem no acto da passagem da vida à arte, nesse milagre que faz de nós observadores privilegiados, porque estamos colocados num posto de observação, diria quase divino, donde podemos topar todos os personagens e suas ações, deduzindo os seus pensamentos e emoções, coisa vedada aos outros personagens que apenas dominam parte da "realidade", num dado momento.
Mas atenção porque nem sempre, essa visão de "anjos", nos impede também de sermos "enganados" e induzidos em erro. Basta pensar na génese e desenvolvimento de um filme.
O filme como produto final, é como se fosse um ser vivo, com a sua identidade própria e valendo-se por si próprio, mas como nas pessoas muitas vezes temos que regredir à sua "genética", para explicar certas características e comportamentos. E num filme essa génese, parte de uma ideia seminal, passa pela escrita de um argumento - a adaptação de uma obra literária, no nosso caso concreto - e depois a sua implementação com a escolha do "cast" e de todos os meios humanos e técnicos de suporte, terminando com a obtenção e edição dos fotogramas em rápida sequência, ou seja o nosso filme.
A "realidade" num filme é basicamente aquilo que vemos e sentimos e isso depende de nós e do filme. O que precede isto na escala evolutiva, de um e de outro lado, pode ter importância mas o decisivo é esta "realidade" nova, que resulta do nosso encontro com o filme. Sejamos claros, a realidade objectiva não existe no cinema, mesmo que seja documental ! O que existe, são versões ou expressões de subjectividade.
Se isto já define um filme de per si, imagine-se uma cascata de filmes sobre o mesmo assunto.
O "remake" cinematográfico, à priori, acrescenta um novo ponto de vista e no caso concreto que nos traz aqui, a complexidade é multiplicada, uma vez que o tema é precisamente "o ponto de vista". Ou seja, quem faz a nova versão, não só acrescenta um ou mais pontos de vistas diferentes sobre o filme em geral, na forma como é concebido, escrito e realizado, mas também revendo as "versões" dos personagens sob novos prismas, alarga os horizontes de análise.
A Akira Kurosawa (1910-1998), autor japonês de "Rashomon", pertence o mérito de ter concebido a obra original, em 1950, 14 anos antes do americano Martin Ritt (1914-1990), se ter atrevido a voltar à obra do mestre japonês, com o seu "The Outrage", de 1964. Obra verdadeiramente superlativa, "Rashomon" é um verdadeiro tratado psicológico -" O efeito Roshomon", entrou mesmo no léxico da disciplina - e um legado artístico colossal.
Num clima de tragédia grega e com laivos de Shakespeare, Kurosawa faz uma sagaz incursão nas motivações mais recônditas dos comportamentos humanos. O que leva o ser humano a mentir ou a distorcer os factos ? Porque motivos a imagem que temos de nós próprios e a que "vendemos" aos outros, nem sempre se coaduna com a realidade das nossas ações ? Até que ponto nos importamos com os outros e as suas razões ?
Com uma narrativa sólida e coerente, uma direção artística e interpretações convincentes e uma fotografia magistral de Kazuo Miyagawa, o mestre japonês, construiu um clássico imperecível.
Martin Ritt estava portanto consciente da tarefa hercúlea que tinha pela frente e sem medo ousou compôr uma versão ocidentalizada e mais contemporânea, que embora sem o fulgor do original, concede-nos um inesperado prazer em revisitá-la, desde que seja sem redutores e tolos preconceitos.
Nesta versão ocidentalizada descomprometida e adaptada ao Oeste americano, ainda que inteligentemente não se submetendo às convenções de um género marcado por dogmas pouco abertos a olhares alternativos, Ritt consegue passar a sua mensagem e tornar credível a sua "versão". Para o prazer que o filme proporciona, conta muito uma fotografia verdadeiramente genial de James Wong Howe. Como contam as soberbas interpretações de Paul Newman, Claire Boom (com a mais valia de ter estado antes na versão teatral) e Edward G. Robinson, não desfazendo de todo o "cast", que é irrepreensível.
As novas nuances, são as deliberadas versões cinematográficas, mas poderiam ser teatrais ou até literárias, de obras anteriores, com intuitos à partida não fraudulentos, pretendendo ver os mesmos assuntos sob outras perspectivas e desta forma contribuir para um enriquecimento e aprofundamento dos conhecimentos humanos e artísticos e até para uma maior aproximação à "verdade".
São muito curiosos os dois filmes que se revêem em seguida, porque primeiro o "original" e depois a "cópia", falam desta dispersão de pontos de vista, com que os mesmos acontecimentos são vistos e lidos por vários observadores da realidade e das razões objectivas ou subjectivas que sustentam essas leituras. E novas perspectivas emergem no acto da passagem da vida à arte, nesse milagre que faz de nós observadores privilegiados, porque estamos colocados num posto de observação, diria quase divino, donde podemos topar todos os personagens e suas ações, deduzindo os seus pensamentos e emoções, coisa vedada aos outros personagens que apenas dominam parte da "realidade", num dado momento.
Mas atenção porque nem sempre, essa visão de "anjos", nos impede também de sermos "enganados" e induzidos em erro. Basta pensar na génese e desenvolvimento de um filme.
O filme como produto final, é como se fosse um ser vivo, com a sua identidade própria e valendo-se por si próprio, mas como nas pessoas muitas vezes temos que regredir à sua "genética", para explicar certas características e comportamentos. E num filme essa génese, parte de uma ideia seminal, passa pela escrita de um argumento - a adaptação de uma obra literária, no nosso caso concreto - e depois a sua implementação com a escolha do "cast" e de todos os meios humanos e técnicos de suporte, terminando com a obtenção e edição dos fotogramas em rápida sequência, ou seja o nosso filme.
A "realidade" num filme é basicamente aquilo que vemos e sentimos e isso depende de nós e do filme. O que precede isto na escala evolutiva, de um e de outro lado, pode ter importância mas o decisivo é esta "realidade" nova, que resulta do nosso encontro com o filme. Sejamos claros, a realidade objectiva não existe no cinema, mesmo que seja documental ! O que existe, são versões ou expressões de subjectividade.
Se isto já define um filme de per si, imagine-se uma cascata de filmes sobre o mesmo assunto.
O "remake" cinematográfico, à priori, acrescenta um novo ponto de vista e no caso concreto que nos traz aqui, a complexidade é multiplicada, uma vez que o tema é precisamente "o ponto de vista". Ou seja, quem faz a nova versão, não só acrescenta um ou mais pontos de vistas diferentes sobre o filme em geral, na forma como é concebido, escrito e realizado, mas também revendo as "versões" dos personagens sob novos prismas, alarga os horizontes de análise.
A Akira Kurosawa (1910-1998), autor japonês de "Rashomon", pertence o mérito de ter concebido a obra original, em 1950, 14 anos antes do americano Martin Ritt (1914-1990), se ter atrevido a voltar à obra do mestre japonês, com o seu "The Outrage", de 1964. Obra verdadeiramente superlativa, "Rashomon" é um verdadeiro tratado psicológico -" O efeito Roshomon", entrou mesmo no léxico da disciplina - e um legado artístico colossal.
Num clima de tragédia grega e com laivos de Shakespeare, Kurosawa faz uma sagaz incursão nas motivações mais recônditas dos comportamentos humanos. O que leva o ser humano a mentir ou a distorcer os factos ? Porque motivos a imagem que temos de nós próprios e a que "vendemos" aos outros, nem sempre se coaduna com a realidade das nossas ações ? Até que ponto nos importamos com os outros e as suas razões ?
Com uma narrativa sólida e coerente, uma direção artística e interpretações convincentes e uma fotografia magistral de Kazuo Miyagawa, o mestre japonês, construiu um clássico imperecível.
Martin Ritt estava portanto consciente da tarefa hercúlea que tinha pela frente e sem medo ousou compôr uma versão ocidentalizada e mais contemporânea, que embora sem o fulgor do original, concede-nos um inesperado prazer em revisitá-la, desde que seja sem redutores e tolos preconceitos.
Nesta versão ocidentalizada descomprometida e adaptada ao Oeste americano, ainda que inteligentemente não se submetendo às convenções de um género marcado por dogmas pouco abertos a olhares alternativos, Ritt consegue passar a sua mensagem e tornar credível a sua "versão". Para o prazer que o filme proporciona, conta muito uma fotografia verdadeiramente genial de James Wong Howe. Como contam as soberbas interpretações de Paul Newman, Claire Boom (com a mais valia de ter estado antes na versão teatral) e Edward G. Robinson, não desfazendo de todo o "cast", que é irrepreensível.
☑ RASHÔMON - ÀS PORTAS DO INFERNO (1950)
"Rashômon" - título original em japonês.
"Às portas do inferno" (Portugal) "Rashomon" (Brasil).
Origem: Japão. Ano: 1950.
Realização: Akira Kurosawa.
Argumento: Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, adaptando os contos de Ryûnosuke Akutagawa, "Rashomon" e "In a groove (Num bosque)".
Com:Toshirô Mifune, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Takashi Shimura e Minoru Chiaki.
Cinematografia: Kazuo Miyagawa. Música: Fumio Hayasaka. Produção: Minoru Jingo e Masaichi Nagata.
Género: Drama, crime. Duração: 88 minutos. Preto e branco.
Sinopse
No japão feudal, do tempo dos samurais, um crime e as suas consequências são vistos de diferentes pontos de vista.
☑ THE OUTRAGE - ULTRAGE (1964)
"The outrage" - título original
"Ultrage" (Portugal) e "Quatro confissões" (Brasil).
Origem: EUA. Ano: 1964.
Realização: Martin Ritt
Argumento: Michael Kanin, adaptando do argumento original de Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, baseados nos contos "Rashomon" e "In a groove (Num bosque)", de Ryûnosuke Akutagawa.
Com: Paul Newman, Laurence Harvey, Claire Bloom, Edward G. Robinson, William Shatner e Howard Da Silva.
Cinematografia: James Wong Howe. Música Alex North. Produção: A. Ronald Lubin.
Género: Drama, Western, Crime. Duração: 96 minutos. Preto e branco.
Sinopse:
Um crime e as suas consequências são vistos de diferentes pontos de vista, desta vez, no velho Oeste americano.
"Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto."
(provérbio português)
Já agora, eu acrescento o meu.